Columbus

Sobre o realizador

Kogonada é um brioso imigrante nascido em Seoul e criado no Midwest. Chamou a atenção da Filmmaker Magazine (25 New Faces of Independent Film) e do New Yorker com o seu trabalho visual e crítica cinematográfica na Criterion Collection e na Sight & Sound. Este filme é a sua estreia como realizador de uma longa metragem.

Sobre a influência do sítio

Fiz uma viagem de um dia a Columbus, há uns anos, com a minha mulher e os meus dois filhos. Tinha lido há pouco sobre essa Meca da arquitectura modernista nas regiões rurais de Indiana. Percorrendo a cidade, encontrei edifícios concebidos por Eero Saarinen, I.M.Pei, Richard Meier e outros. Havia um amargor inegável em tudo aquilo – aquela cidade tranquila no conservador Midwest, que funcionava como um museu vivo (e fantasmagórico) da promessa do modernismo. Senti-me imediatamente inspirado para fazer lá um filme. Durante a nossa visita, fiquei com uma ideia dos personagens e da história que lá se desenrolaria.

Sobre os aspectos pessoais da história

A morte é separação e toda a separação é uma espécie de morte. Sempre fui muito sensível a ambas. O pequeno e final adeus. Tenho pais que envelhecem e filhos que crescem, e sinto aumentar o peso dessa futura separação. Haverá significado na ausência? Como argumentamos com a sua inevitabilidade? A história de COLUMBUS emerge dessas interrogações.

Sobre as sobrecargas filiais de Jin e Casey

Há uma citação pungente no início do filme de Yasujiro Ozu “Only Son” (O Filho Único – 1936) que diz, “A tragédia da vida começa com a ligação entre pai e filho.” Jin e Casey estão ambos sobrecarregados com esta ligação mas de forma totalmente diferente. Jin quer ir-se embora. Casey quer ficar. Ambos os desejos têm a ver com essa sobrecarga.

Sobre Casey e a arquitectura

Penso que para a Casey a arquitectura é uma entrada para uma forma de ver. Também lhe dá ar para respirar num momento crítico da vida dela. Não sei bem se ela se tornará arquitecta, mas ficou mais consciente esteticamente. Julgo que isto acontece a todos aqueles a quem uma forma de arte sensibiliza. Frequentemente essa sensibilização estende-se a outras formas de arte e também à humanidade. Desta forma, é progressiva. O encontro da Casey com a arquitectura reflecte o meu próprio encontro com o cinema numa fase crítica. E o edifício modesto que primeiro sensibiliza Casey é semelhante ao tipo de cinema que me comoveu.

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Críticas

Desde o primeiro plano de “Columbus” que uma certeza nos invade: estamos em presença de um realizador estreante para quem o lugar da câmara é vital, de tal modo a composição plástica do plano se estabelece. Não é um preciosismo formal que se imponha ao fluir da narrativa, é algo que pertence ao núcleo essencial da narrativa, de tal maneira que a história de Cassandra/Haley Lu Richardson e de Jin/ John Cho não faria sentido sem o rigor que cada enquadramento procura, incrustando harmonia e uma certa sensação de estranheza na peculiar relação que entre eles se estabelece. Tal não faria sentido se não tivesse como pano de fundo os edifícios modernistas da cidade americana de Columbus, no estado de Indiana, lugar que justifica o título do filme. É uma história contada com rara inteligência, sensibilidade e discrição, onde uma jovem mulher desabrocha, um homem defronta agruras familiares, a arquitetura e o espaço em geral definem sentimentos e estados de alma – e a vida vai.

Jorge Leitão Ramos, Expresso

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Diálogos com a arquitectura na cidade de Columbus

Columbus é um filme construído na relação entre o espaço físico e o espaço mental. Como se toda a psicologia estivesse em diálogo com as formas circundantes. Conversa com Kogonada, o realizador, com Ozu na pele, de um dos filmes mais bonitos de entre o que já chegou este ano.

A cidade de Columbus mais conhecida será a capital do Ohio, mas também no Indiana existe uma Columbus, alcunhada de “Atenas da pradaria” pela riqueza da sua arquitectura. É esta Columbus que Kogonada, pseudónimo de um autor americano de origem coreana, filma nesta sua estreia na longa-metragem de ficção, e a arquitectura, a reflexão e a contemplação da arquitectura local, predominantemente modernista, desempenha um papel crucial: através das movimentações das personagens, e do relacionamento delas com os espaços que cruzam, Columbus é um itinerário pela cidade e pelo seu ambiente, tanto quanto um pequeno ensaio sobre a relação entre os seres humanos e as formas arquitectónicas que os enquadram. “Assimétrico, mas ainda assim equilibrado”, diz, pelo menos duas vezes, a jovem protagonista feminina, comentando edifícios e estruturas da cidade: poeticamente, e duma forma que tanto remete para uma “teoria” sobre a arquitectura como para o encontro duma verdade, mais ou menos “filosófica”, sobre a vida e a existência humanas, é porventura a frase-chave de Columbus.

Que também se podia aplicar, num filme que redescobre um dos valores mais em perda do cinema contemporâneo (os poderes e os encantos do enquadramento, do plano concebido primordialmente como organização do espaço e composição visual), ao próprio trabalho de Kogonada: também dele se poderia dizer que procura a “assimetria, ainda assim equilibrada”. Kogonada está habituado a trabalhar a partir de “motivos”, no sentido pictórico do termo. Como alguns leitores saberão, sobretudo os mais frequentadores dos recantos cinéfilos da internet, Kogonada tem sido, desde há uns dez anos, um prolífico autor dos chamados “vídeo-ensaios”, exercícios de montagem que trabalham obras de cineastas consagrados chamando a atenção para alguns dos seus aspectos mais particulares — como Kogonada fez, para dar dois exemplos límpidos (e que são relativamente fáceis de encontrar na Internet), com “as mãos de Robert Bresson” ou “os olhos de Alfred Hitchcock”. De certa maneira, com o seu motivo arquitectónico bem definido, Columbus, embora funcionando em moldes completamente diferentes, conserva uma parte dessa lógica de trabalho.

Em conversa com o Ípsilon, Kogonada, que é bastante reservado quanto aos pormenores biográficos (sabe-se que é de origem coreana, facto aliás rimado pelo protagonista masculino de Columbus, mas recusa-se a dizer que idade tem), explica essa origem do seu trabalho: “Comecei a fazer esse tipo de ensaios porque era exactamente essa a forma como queria explorar o cinema. Nunca deixei de pensar, e sempre tive vontade de experimentar, um cinema ‘normal’, mas isso requer muita gente, muita colaboração, e estes ensaios são como pintar ou escrever, são coisas que posso fazer sozinho, calmamente, em minha casa, noite fora.” O que não surpreende é que Columbus denote tanto — no seu trabalho sobre o espaço e sobre o enquadramento, mas também em procedimentos “estruturais” como os célebres pillow shots — a influência de Yasujiro Ozu, pois ela já é confessada no pseudónimo escolhido pelo autor (Kogo Noda era o nome de um dos mais importantes e recorrentes argumentistas de Ozu): “Sim, é verdade, é uma pequena homenagem, com aquela variação auto-derrisória de transformar o ‘noda’ em ‘nada’. Dizer-me que encontra alguns reflexos de Ozu no meu filme é para mim o maior elogio, porque ele foi muito importante na minha vida, não apenas na minha vida de espectador, mas na minha formação enquanto pessoa”.

Justamente, dir-se-ia que Columbus não “cita”, apenas reflecte Ozu como “léxico” natural do autor: “Pois, não se trata de imitar, não o tentei imitar, mas Ozu está-me na pele, está-me nos ossos. Casey [a personagem de Haley Lu Richardson] diz que a arquitectura lhe dá espaço para reflectir e respirar, e para mim o cinema também foi isso, os filmes de Ozu, de Kiarostami, tiveram um grande impacto em mim, não só intelectual, mas existencial, por assim dizer”.

Columbus é um filme construído na relação entre o espaço físico, exterior, e o espaço mental, interior, como se toda a psicologia (das personagens) estivesse em permanente diálogo com as formas circundantes. “Sucintamente, é mesmo isso o que me interessava explorar”, diz, “partindo da intuição de que somos afectados pelo espaço, e que é o espaço que contemplamos ou ocupamos que nos ‘forma’”. Nunca estudou seriamente arquitectura, é apenas um “amador” que gosta particularmente do modernismo e do minimalismo. Gosta da ideia de que “o vazio é uma coisa se cria” e isso é um dos aspectos que mais o atrai em Ozu: “quando era miúdo, o vazio aterrorizava-me, consumia-me a ideia de deixar estar vivo, a ideia de os meus pais um dia desaparecerem, todas essas coisas que numa certa ideia são muito angustiantes. Na arquitectura, como em certos cineastas, gosto da capacidade de dar um sentido estético a esta angústia, de construir uma ligação harmoniosa com essa impressão de vazio e de ausência, até que se perceba que não é uma coisa de que se deva fugir e que, pelo contrário, deve ser aceite e abraçada”.

Faz sentido dizer que o cinema, enquanto arte do espaço e do tempo, está muito próximo da arquitectura? Para Kogonada sim, “a conexão é absoluta”. A arquitectura é “mais espaço” e o cinema é “mais tempo”, mas “tempo e espaço definem-se mutuamente”, é preciso um para apreciar o outro. E o cinema, nesse sentido, “também é arquitectura”, construção de uma estrutura e de uma forma: “A experiência do tempo é fulcral no cinema, mas para essa experiência é fundamental a composição do espaço, porque é através dele que o tempo se define e se torna material”.

São os cineastas que trabalham essa noção, ou a partir dessa consciência, que mais o cativam. Ozu, Kiarostami, Antonioni, Bresson, ou, entre os vivos e activos, Jarmusch e Hirokazu Kore-eda. “Para mim, os filmes que ‘ficam’ são aqueles que me constroem um sentido de espaço muito concreto, e que persistem na minha memória como um sítio onde estive, um sítio que habitei durante um par de horas. É essa a sensação que pretendo para os espectadores de Columbus: que se lembrem do filme como um sítio onde estiveram”

Por nós, esse objectivo parece mais do que alcançado — e é um prazer “habitar” o filme de Kogonada. Cabe agora ao espectador não deixar passar um dos filmes mais bonitos e mais originais de entre tudo o que já chegou aos nossos ecrãs em 2018.

Luís Miguel Oliveira, Público

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