J'Accuse - O Oficial e o Espião

Ciclo (in)justiças

10 DE MARÇO | IPDJ | 21H30
J'ACCUSE - O OFICIAL E O ESPIÃO, Roman Polanski, França/Itália, 2019, 132', M/12

trailer, sinopse e ficha técnica: aqui

críticas

Memórias do "Caso Dreyfus": da difamação à verdade
J"Accuse - O Oficial e o Espião revisita o célebre "Caso Dreyfus", em finais do século XIX, quando um militar francês de origem judaica foi injustamente acusado de traição - Roman Polanski realizou o filme a partir do livro de Robert Harris.
mínimo que se pode dizer de J"Accuse - O Oficial e o Espião, de Roman Polanski, é que se trata de um filme contra a corrente. Desde logo, contra a noção de que o espectáculo cinematográfico não passa de uma sucessão de super-heróis fabricados com efeitos especiais... Afinal, há histórias de gente viva que vale a pena contar, continuar a contar. Mais do que isso: estamos perante um retorno, tão sereno quanto sofisticado, a uma arte narrativa que continua a acreditar nas virtudes do cinema como espelho crítico das convulsões da história coletiva.
Podemos classificar essa crença como primitiva? Sim, sem dúvida, creio mesmo que podemos e devemos resistir à futilidade de alguns "modernismos" digitais (mesmo não esquecendo as muitas maravilhas que as novas tecnologias têm gerado). J"Accuse - O Oficial e o Espião é um filme marcado por tensões emocionais que remontam à ideia fundadora do cinema como "coisa" próxima da vida, ao mesmo tempo capaz de ser maior que a vida.
E tanto mais quanto Polanski propõe um elaborado reencontro com o célebre "Affaire Dreyfus", saga de um oficial do exército francês que, através de uma conjugação de preconceitos contra os judeus e perversas manipulações de bastidores, foi alvo de um cruel processo de difamação. Na história moral da França e, em boa verdade, da Europa, este é um capítulo de perturbante dramatismo, há muito inscrito na memória coletiva.
Polanski está longe de santificar a personagem de Alfred Dreyfus (1859-1935). Num certo sentido, pode mesmo dizer-se que ele é uma marioneta distante, nem sequer muito simpática, que conhecemos menos pelos seus atos e mais através das ações das outras personagens. E há, evidentemente, um inteligente golpe dramatúrgico na escolha de Louis Garrel para interpretar Dreyfus: sendo Garrel uma figura muitas vezes associada a um certo "visual" de sedução (publicitária ou não), Polanski trabalha a sua imagem alheando-se do cliché, com a frieza de quem cria uma escultura abstrata - o que, entenda-se, não é estranho à talentosa versatilidade do ator.
Tal "secundarização" de Dreyfus decorre, como é óbvio, da subtil arquitetura do argumento, baseado no livro de Robert Harris, O Oficial e o Espião (Ed. Presença); aliás, a autoria do argumento é partilhada por Harris e Polanski. Desde o primeiro momento, trata-se menos de seguir o calvário de Dreyfus e mais de conhecer o modo como foi cimentado o processo da sua culpa profissional e consequente culpabilização social.
Daí o peso decisivo da personagem do coronel Georges Picquart, exemplarmente interpretado por Jean Dujardin (o actor francês "oscarizado" em 2012, pela sua composição em O Artista). A saber: Picquart não é, de modo algum, o agente de qualquer forma de revolta contra o próprio colectivo a que pertence. Bem pelo contrário: é em nome das regras desse colectivo que ele se empenha na demonstração da inocência de Dreyfus.
Acusado de espionagem em favor da Alemanha, em 1894 (só seria ilibado em 1906), Dreyfus surge, assim, como o "ponto de fuga" de todo um sistema militar, político e judicial que nele encontra um bode expiatório das suas próprias contradições internas. Mais do que isso: Dreyfus é tratado como símbolo de uma "corrupção" que esse mesmo sistema castiga para preservar a sua utópica "pureza".
Polanski "corrigiu" o título original do livro de Harris (An Officer and a Spy). Assim, no original francês, o filme intitula-se apenas J"Accuse. E faz todo o sentido que, entre nós, se tenha preservado essa afirmação contundente na primeira pessoa que, como é sabido, resume a decisiva viragem na reposição da verdade do "caso Dreyfus": "J"Accuse" serviu de título à carta aberta do escritor Émile Zola a Félix Faure, Presidente da França, publicada a 13 de Janeiro de 1898, no jornal L"Aurore, acusando o governo francês de anti-semitismo e denunciando a prisão sem fundamento de Dreyfus.
Este é, afinal, um ponto de decisiva importância, também ele contrário aos valores correntes das narrativas industrial e comercialmente mais poderosas. Estamos perante um filme que revaloriza a energia da escrita, expondo o modo como o seu papel público pode ser decisivo na configuração da história, seja ela individual ou colectiva. Nesta perspectiva, J"Accuse - O Oficial e o Espião é também uma celebração do poder ancestral das palavras.
* * * * * Excepcional
João Lopes, dn

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“J'Accuse” no passado e no presente. Será que Roman Polanski é Alfred Dreyfus?
Envolto, ele próprio, em controvérsia, Roman Polanski aborda em “J'Accuse – O Oficial e o Espião” a história de Alfred Dreyfus de um modo surpreendente e brilhante.
O caso Dreyfus foi, em França, na viragem do século XIX/XX, um erro judiciário, um tumulto político, um infame assomo de antissemitismo, um exemplo grado de como a autoridade do Estado pode trucidar um cidadão – e um exemplo de como a força da imprensa e da opinião pública consegue ajudar a contrariar o império do mando dos que julgam tudo poder. Em 1894,  acusado de traição por espionagem a favor da Alemanha, o oficial de origem e prática judaica Alfred Dreyfus é condenado a prisão perpétua na ilha do Diabo, sujeito a uma humilhante cerimónia pública de erradicação do Exército, tudo no meio de um exacerbado clima popular racista e de procedimentos judiciais sumários e manipulados. Dreyfus sempre clamou que estava inocente.
Quando começaram a emergir as primeiras provas de que o espião não seria ele, as altas patentes militares e o próprio Governo tentaram abafá-las. Foi então que Émile Zola publicou o manifesto “J’Accuse” no jornal “L’Aurore” de 13 de janeiro de 1898. Sob a forma de carta aberta ao Presidente da República, Félix Faure, Zola denunciava publicamente a maquinação, nomeando culpados e apontando o dedo aos agentes da infâmia. O Poder reagiu da forma mais brutal – Zola seria mesmo condenado a uma pena de prisão que não cumpriu porque se exilou em Inglaterra. Mas os dados estavam lançados.
Amnistiado num primeiro tempo (mas sendo considerdao culpado), Dreyfus só seria inocentado e reintegrado no Exército em 1906.
Zola morrera, entretanto, em 1902, em circunstâncias muito estranhas, intoxicado por monóxido de carbono, com sua mulher enquanto dormiam. Isto é o que se sabe, em voz corrente e não especializada, de um caso que abalou a França e cuja memória, quer da ignomínia quer da coragem na luta pela justiça, perduram. O “J’Accuse” de Zola é um farol do empenhamento público e político dos intelectuais. O que só os especialistas sabem é que o processo de inocentação e reabilitação de Dreyfus teve na base o trabalho policial do coronel Georges Picquart, um oficial, que, colocado ao Serviço de Informações Militares, começou a escavar nos documentos arquivados e a descobrir que havia conjura num processso judicial. É sobre Picquart e a sua ação que se debruça o novo e brilhante filme de Roman Polanski.
É uma obra de amplitude clássica, um grande e surpreendente fresco histórico, onde a sociedade francesa dos finais de oitocentos surge retratada de um modo impiedoso e justo, a mostrar as contradições, as ignomínias e excelências de que Dreyfus foi peão em vasto tabuleiro. A sua condição de joguete é bem materializada no facto de ele pouco estar em cena, pois não é Dreyfus o asssunto do filme, nem é objetivo tomar o seu ponto de vista na narrativa. Polanski olha mais alto – o que ele quer mostrar é a trama e, depois, o medo como efeito, a capacidade que o Poder tem de esmagar um indivíduo.
E são muitas as camadas, os sedimentos, de que “J’Accuse – O Oficial e o Espião” é feito, já que o filme é atravessado por três grandes linhas de força: o antissemitismo larvar que perpassa (até o herói não se coibe de assumir que gosta muito pouco de judeus...); a manipulação da máquina judicial militar, encenada como uma grande conjura de Estado capaz de exterminar quem ouse fazer-lhe frente; a determinação ética do protagonista, o perseverante coronel Picquart, que arrisca tudo em nome de um imperativo de justiça. É do lado dele que nós, espectadores, estamos, é com ele que sofremos angústias e rejubilamos na vitória, é pela sua mão que vamos indo na operação de desvendar o que está oculto, na revelação da verdade, na perseguição aos culpados e no seu castigo.
Estratégia de mestre: Polanski contrói o filme não como uma sucessiva descrição de factos – aconteceu isto, depois aquilo, mais tarde aqueloutro – pecha maior de muitas ficções históricas, mas com a chispa de um thriller, uma história movimentada, onde os riscos abundam, há surpresas que irrompem em cada esquina e nenhum caminho é certo ou seguro. E não importa que o espectador saiba que Dreyfus acabou reabilitado porque essa não é a história: o aguilhão é saber como lá se chegou, quando todas as rotas tinham cães raivosos à espreita.
No fundo “J’Accuse – O Oficial e o Espião” é feito da mesmíssima matéria com que, de “ Os Homens do Presidente” a “Os Três Dias do Condor”, de “Missing” a “O Escritor Fantasma” que o próprio Polanski dirigiu em 2010, se edificou a melhor tradição das ficções políticas liberais americanas (e a designação ‘americanas’ não identifica aqui uma nacionalidade, mas uma forma de abordar a realidade que teve matriz em cineastas como Alan J. Pakula ou Sydney Pollack e onde Polanski, neste filme, foi beber). O facto de se passar há mais de um século, só é tomado em consideração para efeitos de cenografia e guarda-roupa. O filme não é um drama histórico em costumes, é uma história policial com gente como nós lá dentro.
Deste modo, empolgante.
[...]
Jorge Leitão Ramos, Expresso