Pereira Brava / The Wild Pear Tree

 

7 MAI | IPDJ | 21h30 - A PEREIRA BRAVA, Nuri Bilge Ceylan, Turquia, 2018, 188’, M/16

sinopse, trailer: aqui

Nota do realizador: 

É essencial que todos sejamos capazes de assumir o risco de sair de casa e de nos misturarmos com os outros. No entanto, se nos aventuramos muito longe, podemos perder progressivamente a nossa própria identidade. Por outro lado, se o medo de explorar é avassalador, retiramo-nos para dentro de nós mesmos de tal forma que paramos de crescer e de evoluir. (…) As contradições são importantes para testarem a nossa capacidade de dar uma forma criativa a essas mesmas contradições. (...) Este filme é a história de um jovem que, de certa forma, se sente envergonhado de uma forma que ele é incapaz de admitir. Ele sente que sua vida está indo em uma direção que ele não gosta e não consegue aceitar. Eu queria retratar um vasto mosaico de personagens, cada um dos quais eu queria descrever com sinceridade e rigor. Há um ditado: “cada coisa que um pai esconde reaparecerá um dia em seu filho”. Quer queiramos ou não, não podemos evitar herdar certas características de nossos pais, como algumas de suas fraquezas, seus hábitos e uma multiplicidade de outras coisas. O inescapável deslizamento de um filho em direção a um destino sofrido por seu pai é contado através de uma série de eventos dolorosos ”. Nuri Bilge Ceylan

Notas da crítica internacional:

Ceylan, leitor de Tchekhov e de Dostoiévski, atinge com este filme uma profundidade e uma acuidade romanescas, que são apanágio da literária. Nicolas Schaller, Le Nouvel Observateur ★★★★★

Uma história de aprendizagem apaixonante. Stéphane Leblanc, 20 Minutes ★★★★

[...] uma beleza plástica desconcertante e uma magnitude quase disruptiva. Elisabeth Franck-Dumas, Libération ★★★★★

Em todos os seus filmes, Nuri Bilge Ceylan questiona a validade dos laços familiares numa sociedade turca em mutação. “A Pereira Brava” faz parte dessa temática, colocando tudo como sempre no seus personagens num ambiente visual sumptuoso que reflecte as suas contradições. Eithne O’Neill, Positif ★★★★★

Entrevista a Nuri Bilge Ceylan (excerto)

[…]

Relembra-nos a relação entre James Dean e o seu pai em East of Eden…

Quando ele descobre o recorte das notícias na carteira do seu pai, isso é inspirado num evento real. Mas ele sentia-se culpado por tê-lo deixado e partido para o serviço militar, porque a atitude do seu pai tinha começado a mudar. Talvez ele guardasse algum ressentimento por ter vendido o cão, o justificaria a sua suspeita na escola, quando ele tenta esconder do filho o que escreveu. O filho não sabia o quanto o pai gostava do cão quando o vendeu, para conseguir publicar o seu livro. A aldeia era diferente de uma cidade grande: os cães não eram tão valiosos lá.

 Já citou muitas vezes Tchékhov como uma referência para Sono de Inverno. Este novo filme também tem uma reminiscência desse autor, particularmente porque ele nunca julga as personagens… Todos têm uma oportunidade de justiça.

Não apenas Tchékhov, penso eu, todos os grandes autoress recusam o julgamento das suas personagens. O Tenessee Williams, por exemplo… Nós não devemos julgar, apenas compreender, mesmo quando se trata de assassinos. Os meus autores preferidos são russos, como o Dostoiévski. E alguns turcos, como Sait Faik [Abasiyanik], que escreveu belos contos. Um homem solitário, que nunca casou. Ele passou algum tempo em França.

Há uma linha de diálogos que é importante, quando a mãe diz que o cão é a única criatura que não julga o seu dono.

Sim, todos culpam o pai, eles acham que ele é irresponsável, um jogador… Quando o jovem parte para o serviço militar, ele sente-se culpado. A primeira coisa que ele faz quando regressa é perguntar pelo seu pai, e percebe que ele se tornou um pastor. Na verdade, ele questiona-se se o pai guarda algum ressentimento, e fica aliviado ao perceber que não.

Na livraria, há imagens de Gabriel García Márquez, Franz Kafka, Virginia Woolf, Albert Camus… O espaço estava assim quando o encontrei! Apesar de, obviamente, eu apreciar esses autores.

Michel Ciment, Yann Tobin

Critica

Um dos cineastas de peso da actualidade, Nuri Bilge Ceylan, regressa ao seu modo de filmar como ninguém. "A Pereira Brava" é um filme sobre a nossa passagem por este Mundo que, por sua vez, teve uma estreia aplaudida na passada edição do Festival de Cannes.

O Cinema do turco Nuri Bilge Ceylan condensa-se, resumidamente, como reflexões sobre o peso do legado e da forma como as gerações mais jovens encaram esse incontornável "status", por vezes diluindo na viciada cadeia. Foi assim que começou com a sua primeira longa - “Kasaba” (apresentado no Festival de Berlim em 1997) - até se expandir e adquirir diferentes aspetos, numa carreira que tem sido celebrada e premiada um pouco por todo o lado.

O cineasta toma assim de assalto um legado seu, embebendo do seu ambiente para aguçar as diferentes dogmas do Cinema tradicional. Para ser exato, foi a partir de um quarteto que “subiu escadarias” até chegar à tão cobiçada Palma de Ouro de Cannes - “Climas” (2006), “Os Três Macacos” (2008), “Era Uma Vez na Anatólia” (2011) e o referido galardoado “Sono de Inverno” (2014) - que o turco se tornou num dos mais venerados autores do cinema contemporâneo.

Com a chegada deste “A Pereira Brava”, que, numa exceção, saiu de Cannes sem qualquer prémio, testemunhamos uma repetição do material que Ceylan assumiu como o seu manifesto, novamente explorando a juventude em confronto com as complexidades da sua recém-maturidade e do mundo envolto, assim como as prisões invisíveis impostas pela hereditariedade.

Nesse sentido, vamos ao encontro de Sinan Karamasu (Dogu Demirkol) que, após finalizar a licenciatura, regressa à aldeia natal com o intuito de terminar de o seu projetado livro. Nessa sua estadia, terá que lidar com memórias passadas, desde os amores de juventude até às amizades esquecidas, e o destruidor vício do jogo do seu pai.

Essa jornada, em cadência derrotista e uma cedência ao bucolismo, encaminha-nos para as enésimas encruzilhadas da atualidade sob o ponto de vista de Ceylan, com as interpretações do Corão como um dos momentos (positivamente) mais caricatos ou a discussão para apurar e legitimar o centro literário. Coincidentemente, em ambos os debates, as personagens deslocam-se … e deslocam-se em rumo a um destino certo. É o movimento destas figuras que, em consolidação com uma montagem invariável, expõe uma noção própria (sem nunca deslargar os ensinamentos deleuzeanos) sobre imagem-tempo e imagem-ação.

Nuri Bilge Ceylan prova ser capaz com a simplicidade da ação inerente, mas com a hiperatividade da manipulação extrínseca cinematográfica, distorcer uma duração de três horas para um aliviante sentimento de hora e meia. Até porque o tempo [duração] é algo relativo e facilmente manipulável. Digamos que esta anarquia perante os códigos hollywoodeanos, e de certa forma académicos, o torna mais próximo das tendências atuais das séries televisivas, onde o diálogo importa… aliás, muito … sobrepondo-se à ação e esta, por sua vez, subjugando ao dito e sabido.

Pode parecer quase hipocrisia colocar TV (seja convencional ou plataformas de "streaming") no mesmo barco do Cinema de longo fôlego de Ceylan, mas a verdade é que não se trata herança adquirida em nenhuma das partes: trata-se de um paralelismo que nos revela uma ascendente forma de ver o audiovisual, com isto repescando os ensinamentos do "arco-da-velha" de um dos mais importantes teóricos da imagética, Gilles Deleuze.

Longe das doutrinas sobre a natureza e manifestação das imagens categorizadas, “A Pereira Brava” continua a arrebatar-nos com momentos de puro Cinema, e sem o uso maleável da montagem. Simplesmente, o autor aproveita todos os recursos que dispõe, principalmente do meio rural, ao qual dedica grande parte do tempo. O onipresente vento, que chocalha os ramos da titular pereira em sincronia com o cabelo indomável da paixão de Sinan, o Sol, a água e o seu reluzente inconstante e até mesmo a terra/solo. Elementos naturais (um pouco primitivismo aqui), mas que são mais-valias para o olhar do realizador. E sem cair na banal corrente do adjetivo, são imagens belas por sinal.

Obviamente que a verborreia e o prolixo são identificáveis marcas autorais de Ceylan: “A Pereira Brava” é como um filho bastardo que tenta seguir as pisadas dos seus “brilhantes” antecessores, por vezes tropeçando por caminhos mais duvidosos. É um filme que nega a sua orgânica narrativa, que pausa para deambulações filosóficas ou simplesmente quotidianas, uma desaprovação dos códigos impostos pela indústria... mesmo que seja a do cinema de autor.

Talvez seja por isso que este filho "não querido" encontre a compaixão dos seus congéneres junto destes. Mais que um filme, a prolongação da obra e do homem por detrás. Quanto o Cinema consegue ser belo e desengonçado, artístico e sobretudo Humano.

Hugo Gomes, mag.sapo.pt