Raiva

23 ABR – IPDJ – 21H30

RAIVA, Sérgio Tréffaut, Portugal/França/Brasil, 84’, M/14

ficha técnica, festivais, sinopse, trailer: aqui

Notas Críticas

“RAIVA é uma experiência cinematográfica imersiva, profunda e percutante. A utilização do espaço e do tempo é excepcional, sobretudo no que diz respeito à paisagem portuguesa, quase desértica e devastada. O filme transporta-nos para o melhor do cinema western clássico através de uma estética única.”
José Luis Cienfuegos – Director do Festival Europeu de Sevilha

“Sérgio Tréfaut foi até ao melhor património literário neorrealista (o romance “Seara de Vento” de Manuel da Fonseca) para erguer uma adaptacão cinematográfica que nos anos 50/60 não foi possível. RAIVA é seco e depurado e oscila entre uma vontade realista e uma pulsão ritual. E que bem este RAIVA encerra o IndieLisboa 2018!”
Jorge Leitão Ramos – Expresso

“RAIVA surge-nos como uma parábola sobre a injustiça e o destino, sobre a vida e a morte, remetendo para imagens de Ingmar Bergman e de Carl Dreyer. Um cinema rigoroso, filmado na tradição dos grandes clássicos.”
Maria Evenko – Cinemaflood

“RAIVA, de Sérgio Tréfaut, transporta-nos para uma estética cinematográfica dos velhos tempos. Uma estética de mestre.”
Oleg Popov – Polit.ru

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(...) Tréfaut tem o olhar preciso sobre o Alentejo, com um respeito absoluto sobre a essência da obra. Mas apenas ao primeiro olhar pode parecer que este é um filme tardio de neorrealismo. Há uma certa artificialidade estética assumida, contrária ao naturalismo neorrealista dos italianos. Os enquadramentos são perfeitos, a montagem precisa, a fotografia deslumbrante (magnífico trabalho de Acácio de Almeida). Há uma contenção de gestos, um tratamento magnífico do silêncio, típico da maneira de estar alentejana. O filme é feito de um poderoso jogo de silêncios e sombras, de esgares que valem por mil palavras, mas também da dureza do quotidiano, da miséria e de Bento, filho deficiente em que se centram todas as emoções.

 

O filme, a preto-e-branco, constrói-se com lentidão e ponderação, mas sem nada de supérfluo. Estruturalmente, é um spoiler de si próprio. Começa-se pelo final, a cena do tiroteio, e depois percorre-se a história em analepse, deixando o espectador desperto para o lado psicológico das personagens, descolando-se aí do pendor idealista romântico do romance.

Tréfaut é ousado no elenco. Diz ter feito o filme a pensar em Isabel Ruth, mas fez apostas de risco, com bom resultado, a começar pelo “não ator” protagonista. E coloca Leonor Silveira num papel inesperado, nos antípodas dos que desempenhou para Manoel de Oliveira.

Nas vésperas das filmagens de Raiva, Sérgio Tréfaut foi surpreendido com a morte de Nicolau Breyner, que fazia de Mira, o taberneiro. O realizador optou por reescrever o guião, de forma a retirar a personagem, dando mais espaço a Lia Gama, que fazia o papel de esposa de Nicolau, e assim lhe prestou homenagem. 

Manuel Halpern, Visão, novembro 2018

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Sérgio Tréfaut concretiza finalmente o seu grande épico naquele que é já um dos grandes clássicos do cinema português. Mas Raiva vai para além da adaptação de Seara de Vento, o romance maldito de Manuel da Fonseca, no esforço de tentar arrancar do chão as raízes teimosas de uma certa maneira de ver o mundo, ao concretizar um olhar de carga mitológica que liga o Alentejo ao centro do mundo e ao cinema feito de causas de Sérgio Tréfaut. Como se tudo o que fizera antes servisse de esboço para esta crónica de uma morte anunciada mas com o peso e a sonelidade do Cante alentejano.

Raiva é um filme notável, alucinatório, feito de sombras, de rostos expressionistas aprisionados à terra e que com ela se confundem. Naturalmente, atravessado por quadros de western, em que nos sentimos proximos da sonelidade das paisagens e personagens de A Desaparecida ou O Homem Que Matou Liberty Valance, de John Ford, embora marcados por uma depuração social mais próxima de uma herança neorealista, em que se celebra o significado primordial do pão, mas também da honra e do destino dos homens.  Não só a honra de Palma, corporizada pelo magnífico estreante Hugo Bentes, a carregar em si a intensidade do cantar alentejano (cujas marcas vivem no anterior documento Alentejo Alentejo) e a partilha nessa personificação social dos descamisados e oprimidos. Talvez por isso não deixa de ser paradoxal como Raiva receber uma inesperada atualidade num momento em que se trocam valores essenciais por quimeras de um referencial banal.

É numa exegese minuciosa que Tréfaut trabalha cada plano aliando a fotografia contrastada a preto e branco de Acácio de Almeida de modo a conferir ao filme essa espessura clássica. Dele sai um conunto de personagens servidas por uma dimensão intemoral, fantasmagórica, cujos gestos repetidos estarão mais próximos do cinema severo de Béla Tarr, em que nos questionamos se estão vivas ou mortas. Como se fossem zombies ou aparências de um passado eterno, de coisas que teimam em não mudar. Como a imagem petrificada da imponente Isabel Ruth, sólida como uma rocha, mas em que se pode ler um passado de lástima em cada ruga do seu rosto, ou o assustador olhar de caçadeira de Hugo Bentes onde perpassam outros tantos heróis e vilões do passado. Uma imagem fortíssima que nos sugere até um racord inesperado com o rosto preso de Albano Jerónimo, no admirável Mariphasa, de Sandro Aguilar. Como se o próprio cinema brotasse deles mesmo.

De resto, é com essa explosão de violência e ajuste de contas que começamos, logo no início do filme, para fixar o destino marcado de Palma, mas para regressar depois, em flash back, ao sentimento que ferve em lume brando, por debaixo da pele.

É assim o cinema de Sérgio Tréfaut, numa janela de intensidade e realismo brutais, herdeira do cinema empenhado do holandês Joris Ivens, que sempre se combinou com a ficção mas que nunca perdeu a sua dimensão profundamente humana. Raiva combina tudo isso. A forma como nos revemos diante do outro. Como em Viagem a Portugal, a sua primeira ficção já depois de Os Lisboetas, sobre os novos emigrantes. Por isso, Raiva fica assim, tal como o cinema de Ségio Tréfaut, algures entre o céu e o inferno.

Paulo Portugal, Insider, Novembro 2018

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A "Raiva" de Sérgio Tréfaut: "O preto e branco é mais verdadeiro do que a cor"

Sérgio Tréfaut enraiveceu para nos dar esta Raiva, filme que celebra o neorrealismo lusitano através da adaptação do Seara de Vento de Manuel da Fonseca. A luta entre classes, definições inexistentes num Alentejo nos anos 30, onde a austeridade nos embarca para Palma, o chefe de família determinado, o camponês pronto para defender o seu estandarte – a sobrevivência.

Falamos com o realizador sobre o processo de criação deste neo-western, desde a escolha do protagonista até à fotografia de Acácio de Almeida, passando pela politica e a diplomacia.

Trabalhou com Hugo Bentes em Alentejo, Alentejo e tornou-o o cartaz desse seu documentário. Agora deu-lhe protagonismo em Raiva. Para si, porque é que Hugo Bentes foi a escolha certa para o papel de Palma?

Sim, foi uma das vozes do Alentejo, Alentejo. Num dos momentos em que ele é solista, onde faz o “ponto” no Salsa Verde, eu comovia-me no preciso momento em que a voz grave se destacava. O Hugo também participou no canto Alentejo, Alentejo, que reunia uns 60 cantantes, mas só 10 encontravam-se de traje, e ele era um deles. Nessa mesma cena o Hugo emitia uma posição de representação do orgulho alentejano. O orgulho pelas suas terras e sobretudo pelo seu cante.

E como Alentejo, Alentejo é um filme sobre identidade, encontrei nele o representante dessa mesma identidade e por isso fiz dele o cartaz. Mas antes disso, tinha lido o Seara de Vento durante o processo de rodagem do documentário e percebi que aquela mesma história era propicia a um filme, por isso comecei a tratar do argumento.

A única personagem certa para mim era a Isabel Ruth como Amanda Carrusca, mas não tinha ator predefinido para o Palma, o protagonista, exceto Javier Bardem. Na altura falei com os agentes do ator, porque era a única pessoa do universo do Cinema que representava tudo aquilo que Palma emanava. Bardem tinha aquela figura de campo, forte e viril. Não havendo Javier Bardem por razões óbvias, não procurei mais nenhum ator e parti logo para o Hugo. Dei-lhe a ler o guião, não lhe mencionei a personagem que seria. Ele leu e identificou-se imediatamente com a história.

Tenho um olhar para ver a fotogenia sem usar uma máquina fotográfica e o Hugo tinha e ainda, como se comprovou com o filme, a capacidade de interpretar. Há muitos atores que fazem bem isso, mas o que o Hugo tem de extraordinário é possuir a aura de uma grande estrela de Cinema graças à maneira que a câmara flirta com ele, e vice-versa. Quando isso acontece, é raro … muito raro no Cinema.

Está então empenhado em levá-lo a esse prometido estrelato?

Não tenho nenhum plano de ficção de momento que possa meter o Hugo ao barulho e também não passa por mim. Se alguém quiser fazer uma adaptação de O Elétrico Chamado Desejo e colocar o Hugo a fazer de Stanley Kowalski, está certo. Tudo o que peça Brando pode ser substituído pelo Hugo e isso está certo. Claro, não é para fazer um novo Apocalypse Now [risos].

Obviamente, que se ele quiser ser ator será ator. Eu apenas sei que acertei, melhor, acertamos juntos na conceção desta personagem.

Mas o que mais prazer me deu foi executar este casamento de pessoas que nada têm de relacionado umas com as outras. Por exemplo, colocar Leonor Silveira casada com o Hugo, ambos tendo uma filha que é a Rita Cabaço, e a juntar a isso todo um leque de figuras que vão desde Sergi López até José Pinto a fazer de sargento da guarda, não existe ninguém mais salazarento que aquilo.

Estas “uniões” foram constantemente contestadas, ou porque não podia trabalhar o ator x ou porque não posso colocar a Leonor Silveira em tal papel. Mas isso tudo são regras ‘estúpidas’ sobretudo de gente que faz televisão. Eu não sigo isso, apenas faço aquilo que acredito.

Mas o que realmente lhe atraiu em Seara do Vento para torná-lo num filme?

Isso é um pouco evidente. Para além do livro ser um grande romance, a história tinha influencias do western, é um épico e ainda contornos daquilo que poderia integrar nos grandes clássicos de Cinema. O próprio Manuel da Fonseca foi convidado para adaptar esta sua criação ao grande ecrã, nos anos 60 (creio eu) e que decorreria em Espanha. O autor tentou elaborá-lo nesse território, mas desentendeu-se com os espanhóis acerca para onde eles queriam levar aquela história. Por acaso, uma das questões era a persistência em existir um romance entre o Palma e a filha dos latifundiários. Manuel argumentou que esse não seria o seu livro. Com os americanos também foram por razões idênticas.

O autor acabaria por adaptar em 70, convidado por razões bastante politicas na época e que era importante estimular as massas, para o teatro. Intitulou-se de Casa Cercada, que chegou a ser publicado e a peça encenada no Teatro Aberto. Tal foi filmada. Porém, nunca vi as filmagens, mas li o texto. Esta também não iria ao encontro das determinações do Manuel. O livro, a Seara do Vento tinha a ver com a contenção, ele queria no primeiro momento que a versão final passasse no crivo da censura porque era contido, a sua força provinha desse aspeto e não era um livro panfletário.

Em ’76, pós-revolução, convidam o Fonseca para contar tal história com um vocabulário e objetivos mais explicito, tornando-se num manifesto, num panfleto, algo que nem o próprio quis publicar. Curiosamente, tenta dar importância à parte final do cerco. Então, quando fiz a adaptação para cinema, cometi exatamente o contrário que lhe pediam. Aquilo que tentaram fazer para instrumentalizar e instruir o povo não era um dos meus objetivos, mas sim expurgar o texto de intenções pedagógicas porque a realidade fala por si. Depois filmamos de forma que as imagens tem aquilo que têm para dizer e, por outro lado, a trama já é forte o suficiente para mais implicações.

Procurei levar uma história local, preservando a sua localidade. Criei um filme bastante concetual e igualmente realista. Contudo, tirei o arquete, a relação entre abusador absoluto e agregados que tem no meio, um universo onde quem tem tudo abusa até aos limites de quem não tem nada. O contrabando paralelo com a convivência com a autoridade e a igreja como cúmplice dessa relação de abusadores. Isto tudo, elementos pelos quais quis despir da exclusividade local e tecer uma universalidade. Seja qual for a nacionalidade, vai-se identificar automaticamente com a história, apesar de ter tentado atribuir-lhe uma correspondência de um realidade mediterrânea na primeira metade do século.

Haverá quem não encare que o Alentejo era sim … mas era. Por exemplo, a mendiga que aparece no filme, aquela vestimenta quase árabe, é contextualmente coerente. O próprio Nicolau Breyner, alentejaníssimo, que nas provas de roupa vestiu a mendiga, aclamou que “era assim que elas andavam”.

Gostaria de buscar um filme, o qual trabalhou para conceção do seu Outro País, Torre Bela de Thomas Harlan, e colocar em paralelo com este Raiva em questão do contexto histórico e do desenvolvimento da luta entre classes.

Para mim, o Raiva acontece num momento anterior ao que se pode chamar de luta de classes, porque não havia espaço nem direito para isso sequer. Não existiam sindicatos nem nada que se pareça como luta. O abusador tinha o poder total e abusava totalmente, e aí podemos falar de conflitos. Hoje em dia, temos uma parte da população que não possui organização para essa conscientização, como as que trabalham em call centers, por exemplo, uma margem enorme dos trabalhadores mundiais que ficaram totalmente a mercê desses “abusadores”.

Tal como naquele tempo, existe atualmente o receio de perder trabalho, mas a única diferença com a época do Raiva,é que hoje não trabalhar não significa automaticamente morrer de fome. Mas a realidade histórica do Torre Bela, anterior à revolução, é muito próxima à da descrita pelo Manuel da Fonseca, essa relação entre abuso e abusador. Uma realidade contada por qualquer alentejano antes de ’74, que sem trabalho perdia o sentido da vida, porque simplesmente não poderiam mais sustentar a si e aos seus.

Quanto a Torre Bela, um filme que tão bem conheço, aliás é o meu filme preferido filmado em Portugal … reformulo … talvez (até porque João César Monteiro tem que estar nessa eleição algures) [risos]. Mas voltando ao filme, este foi montado por um comunista italiano na época, Roberto Perpignani, e é um retrato da extrema esquerda a tomar conta organizadamente e anarquicamente que nos leva a um falhanço. Por outras palavras, é uma condenação comunista do anarquismo. Ou seja, aquele processo de levantamento do Torre Bela nada tem de relacionado com a reforma agrária no espaço controlado pelo partido comunista e socialista, cuja organização não era totalmente anárquica. E o filme acaba por focar algo particular, que é a desorganização que leva à destruição.

Mas voltando ao Raiva, mesmo não definindo esse confronto, existe uma inconsciência da mesma? Por exemplo, em certo momento ouvimos em voz off uma lengalenga como “Em terra sem Pão. O pobre nasce pobre. O rico nasce rico (…)

Existe uma tentativa de toda a sociedade construir o mito da inserção, ou seja, que a Margaret Tchatcher está ao alcance de nós todos. Que nós todos, pobres, se nos esforçamos muitos chegamos a algum lado. Obviamente que, para chegar a algum lado, é preciso esforço. Isso é obrigatório, mas os números são muito claros acerca da possibilidade de transformação social e dizem que essa capacidade do individuo fugir à regra é residual. No Alentejo passado ou se migrava ou se vivia lá da mesma maneira, ou seja, a exceção era e é muito difícil. Por isso, essa cantiga do “rico nasce rico (…)” é a imagem dos cerca dos 90% dos casos sociais.   

Mas há no seu filme uma subliminar veia politica?

A Seara de Vento pertence a um grupo de romances que marcaram a ascensão do neorrealismo português e dentro desse neorrealismo, o qual levava o herói para a militância, a consciência do abusado e que estava ser explorado como uma tentativa de revolta e afiliação na organização politica. Isso é algo muito repetido em várias obras do neorrealismo, quer na literatura, no cinema e noutras plataformas. O Seara’ não entende bem a isso, é a história de um “cowboy” que tenta, mas que falha, orquestrando com isso uma vingança. O Manuel da Fonseca criou um leque de personagens de forma a criar um conjunto de representações. A filha do Palma representa as “organizações clandestinas”, a força obscura da organização politica, a qual o nosso “herói” não quis ouvir. O facto dele não ter ouvido a filha e a “avó” que representa a força loriga da terra, a sabedoria ancestral, termina, concluindo o livro: “afinal de contas um homem só não vale nada”. Ou seja, por autonomia, a luta coletiva pode mudar o “mundo”. Contudo, o filme não quer maneira nenhuma dizer aos espectadores o que fazer, é apenas um retrato sobre o abuso, a humilhação e a “explosão” de um homem.

Apesar de seguirmos o quotidiano austero e sofrível de Palma e da sua família, em Raiva temos um deslumbre de uma cidade com um rico leque de personagens. O Sérgio Tréfaut não desenvolve nenhuma das figuras desse biótopo, mesmo que o filme coloque uma lente mais profunda nesse sentido.

Eu entendo o que você diz, na verdade não fui muito criativo inicialmente - ao ler ao romance ainda pensei em colocar mais personagens – mas ao invés acabei por retirar, como aconteceu a um presidente da câmara que estava presente no livro. Mas obviamente que essas (outras) personagens tão bem poderiam servir para um retrato social. Era possível, até porque existem milhões de histórias alias, mas a minha adaptação teve um processo que era chegar o miolo, ao caroço, quer esteticamente, quer narrativamente, manter apenas o essencial.

Fale-nos da fotografia, o trabalho com Acácio de Almeida e da escolha do preto-e-branco.

O preto e branco é mais verdadeiro do que a cor, começo por aí. Fundamental, foi a emergência da verdade que me fez decidir este aspeto da fotografia. Quando fizemos testes a cores, todas aquelas imagens pareciam saídas de um anuncio qualquer de iogurte ou de azeite … nem sabia bem o que aquilo era. Aquelas imagens quase propagandistas sobre o Alentejo que vemos habitualmente, é tudo menos o Seara de Vento. Filmar a preto e branco é uma homenagem ao Manuel da Fonseca, é aproximar desse espirito.

Em relação ao Acácio, um excelente diretor de fotografia que conhecemos há “milhões de anos” e temos um carinho especial. É alguém que compreende tudo o que está neste livro de forma intuitiva e que possui uma maleabilidade na forma de trabalhar, para além de um gosto pelo minimalismo no sentido de utilizar o menor número de recursos. Raiva foi o resultado de uma busca estética, de um improviso. Acácio é o coautor do filme, de certa forma.

Como vê este filme numa época em que cada vez mais discute o revisionismo histórico do Estado Novo, deixando passar que o sofrimento não fez parte do cardápio da ditadura salazarista?

Acho que há diálogos que não se consegue ter e eu não sou partidário de usar o diálogo em todas as ocasiões. Quando alguém me diz que no Estado Novo se vivia bem ou as virtudes do regime hitleriano, penso que nesses casos o diálogo não é possível. Há diálogos que são impossíveis e nem tento: “simplesmente chega, vão se instruir.”

Quem tem que se preocupar com o diálogo diplomático são os políticos. Nesse caso, recordo de um filme que vi recentemente, O Processo de Maria Augusta Ramos. Doeu-me ao vê-lo, principalmente a capacidade do PT estar sentado durante o processo de impeachment da Dilma, constantemente negociando por causa de uma acusação falsa. Eles discutiram isso por mais de seis meses, sabendo que no final iria ser imposto algo não verdadeiro. Sou incapaz disso, provavelmente devido à raiva, mas pronto, como dizem, eu sou louco.

Deixa-me só a acrescentar que relembro o momento em que o meu pai quis me apresentar o embaixador do Irão, mas recusei a apertar-lhe a mão, porque apenas lembrava dos crimes que estavam a ser cometidos lá. É a minha maneira de ser.

É curioso ter invocado o impeachment, visto que o tópico “quente” são as eleições brasileiras e a vitória de Bolsonaro.

O Bolsonaro era uma pessoa que não apertaria a mão de certeza absoluta. Como frisei, não discutiria com alguém que advoga o crime, a violência e que, seguindo o modelo americano, diga que a licença de porte de arma livre resolva o problema do Brasil. Simplesmente não consigo com essa falta de noção de discurso. Aliás, o Bolsonaro não sabe falar, não é a troco de nada que não foi a nenhum debate. A sua campanha eleitoral é minada de Deus e Eu, Eu e Deus e uma missa. Questiono, que Deus é esse que ele fala … e que Igreja é essa que se associa a um candidato destes.

No seu filme, a religião, enquanto instituição, encontra-se centrada no lado dos latifundiários, o que também exalta esse paralelismo.  

O discurso do padre [no filme interpretado por Herman José] é de resignação, que devemos aceitar a coisas tal como são. Agora, isso vem do Manuel da Fonseca e do livro, no qual atribui grande ênfase no debate entre mãe e filha [no filme interpretados por Isabel Ruth e Leonor Silveira]. A filha, que trabalhou como empregada para uma família de burgueses, acredita que a sua situação mudará através da devoção a Deus, enquanto que  a mãe, não sendo propriamente ateia mas sim uma pessoa com a sabedoria dos séculos aclama que “Deus não ajuda coisa nenhuma a livrar daquela pobreza”.

Isso é o conflito do Manuel da Fonseca, e claro, por outro lado, a igreja institucional com o padre anafado e que socializa com a família burguesa do livro. Mas o que ficou desse conflito no filme foi um conceito minimal.

Como vê o cinema português atual e a importância dos festivais de cinema no mesmo?

Existem dois tipos de pensamento referente à produção em Portugal, os que advogam que o cinema quer-se comercial e normalmente não é cinema, é outra coisa, e que não tem reconhecimento internacional, nem em festivais, nem em vendas. Por outro lado, há os que lutam por um Cinema que tem a ver com a História da mesma e da arte, essa menção de festivais é onde se legitima o filme para eventuais vendas e distribuição internacionais. É isso que balança o comercial e o de autor (que é Cinema), continuando a permitir a produção. Se isto fosse tudo por encomenda, seria um desastre.

Tirando isso, o cinema português é acima de tudo caracterizado pela liberdade, acho que é essa mesmo a palavra-chave. Temos o exemplo máximo disso que é João César Monteiro. Não pertencemos a uma industria, o nosso Cinema é uma espécie de artesanato. 

E quando me perguntam se o filme tem os moldes de produção do cinema português, afirmo porque Raiva tem isso mesmo … liberdade.

Mas em contrapartida, temos os modelos de financiamento através do ICA que são muito gerontocráticos. Eles não incentivam a criatividade e punem os jovens insensatamente. Não se preocupem em descobrir onde e donde vem a criatividade. Temos o caso do Gabriel Abrantes que conseguiu furar isso, mas muitos são incapazes de “furar” o mandato deste sistema.  

Hugo Gomes, C7nema, novembro 2018

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