Girl

GIRL, Lukas Dhont, Bélgica/Holanda, 2018, 109', M714

Festivais e Prémios: Festival de Cannes: Câmara de Ouro; Melhor Actor; FIPRESCI Prize - Un Certain Regar // Golden Globes 2018 - Nomeação: Melhor Filme Estrangeiro

Sinopse: A determinada Lara, de 15 anos, está empenhada em tornar-se bailarina profissional. Com o apoio do pai, mergulha nessa busca pelo absoluto na sua nova escola. As frustrações adolescentes de Lara e a sua impaciência aumentam quando percebe que o seu corpo não obedece facilmente àquela rígida disciplina, porque ela nasceu um rapaz

Críticas

Estreado este ano no festival de Cannes, Girl (2018) chega às salas portuguesas já com uma bagagem de prémios e boas críticas: vencedor do prémio de Melhor Actor (Victor Polster) da secção Un Certain Regard, a Caméra d’or (prémio máximo para a primeira obra), a Queer Palm e o prémio FIPRESCI da crítica internacional. Girl fala-nos de Lara, uma bailarina adolescente que luta com um corpo que não corresponde à sua identidade (num ambiente em que esse mesmo corpo é posto constantemente à prova, a escola de dança). No entanto parece-me que os dois motivos de maior interesse no filme prendem-se no modo como o Lukas Dhont trabalhou o espelho e o subgénero do body horror (no jogo entre identidades e imagens projectadas).

O filme introduz várias vezes o objecto espelho dentro da narrativa e dentro a composição dos planos. No entanto a forma como o realizador trabalha sobre a ideia de reflexo surge de dois modos muito distintos. Um deles passa pelo olhar da protagonista que, quando se observa nos espelhos (do quarto, da casa de banho…), encontra na imagem reflectida um corpo com o qual não se identifica, procurando por isso mesmo ocultar ao espelho partes que não considera suas de modo a que possa construir perante o espelho (isto é, perante o olhar do outro) uma imagem que não corresponde à concretude da sua fisionomia.

Mas o espelho surge também no filme doutro modo muito distinto (e cujos “contornos semióticos” são bem mais discretos). Várias são as vezes em que, nos estúdios de dança onde Lara estuda, Dhont opta por enquadrar a acção de tal modo que, enquanto observamos o esforço físico dos vários alunos, a câmara vê-se tomada por um movimento à retaguarda revelando-nos que afinal a imagem que víamos era o reflexo dessas mesmas acções. Esta última opção (que o realizador repete várias vezes ao longo do filme) é reveladora do próprio olhar do cineasta perante a sua protagonista: enquanto esta vive um conflito entre a imagem que procura “reflectir” e a dessincronia (posto em ideologia médica, disforia de género) dessa imagem com o corpo que possui, já o olhar do filme sobre ela é um que confunde alegremente (mais que confundir é um olhar que com-funde) o “real” e o seu reflexo. Ou melhor, é um olhar onde não chega a existir uma contradição entre o corpo e a sua imagem (entre o sexo e o género – oposição que, já se sabe, é mais espinhosa do que aparenta, vide Judith Butler).

Ao contrário doutros filmes sobre as vivências trans (documentais ou ficcionais, pouco importa), estas são retratadas num ambiente particularmente cruel para com a pessoa cuja relação com o género não é normativa. Em Girl a integração social de Lara é aparentemente suportável (sim há bullying e sim há um constante recordar da diferença). O seu drama é, acima de tudo, um drama interno: um sofrimento de uma rapariga que não consegue aceitar perante si mesma o corpo que possui senão através de uma cirurgia de confirmação sexual – sendo que essa incapacidade de aceitar o seu corpo tem raízes, é claro, na definição de padrões de beleza e de feminilidade que não incluem o corpo de Lara. Mas o modo como o espelho “reflecte” este choque entre corpos e as suas representações é particularmente certeiro na forma como descreve a situação de muitas pessoas trans, colocando a tónica no tema da performance de género como construtor de uma identidade. Não é pois por mero acaso que um dos últimos planos do filme apresente a re-unificação entre o corpo e a sua imagem reflectida numa janela, como se – finalmente – fosse possível para Lara uma aproximação entre essas duas realidades.

Mas enquanto via o filme pensei muito mais no modo como o filme trabalha segundo os arquétipos do filme de terror, em particular o sub-género do body horror. Nessa tipologia de filmes que teve a sua manifestação mais marcantes durante os anos 1980 – nomeadamente no cinema de David Cronenberg – o terror vinha da mudança. O corpo que se supunha “perfeito” – uma unidade ontológica intocada e sacralizada – via-se ameaçado por entidades exógenas (alienígenas, robots, mutações genéticas resultantes de experiências científicas, insectos, doenças e a lista poderia continuar) que o vinham perturbar, deformando-o, reconfigurando-o, resignificando-o. Ora bem, perante Girl apetece inverter esse sub-género e falar de um horror of the body (procurando uma tradução, passamos de um terror corporal para um corpo de terrores). A apropriação de alguns dos tropos recorrentes do cinema de terror por Lukas Dhont (as unhas que caem, a pele que sofre, a mutilação… – não esquecendo que este é um filme sobre dança, prática artística muito habituada ao martírio do corpo, nomeadamente dos pés, vide Darren Aronofsky) é feita em sentido inverso: o terror não está na mudança, está sim na continuação, na persistência, na permanência.

Lara não teme a alteração do seu corpo, pelo contrário, ela deseja-a – o medo é que tudo fique igual, inalterado, esse é o verdadeiro papão. O terror não está na invasão do corpo, o terror é o corpo (e portanto há que aniquilá-lo para expurgar o mal que ele carrega). E se falava em apropriação inversa do género cinematográfico (pelo realizador) também podia falar de apropriação inversa do género (por Lara), uma vez que é essa destruição do físico que possibilita uma re-apropriação de Lara sobre o seu próprio corpo. Tanto ao nível do massacre dos pés através do exercícios de bailado (de modo a inaugurar uma nova identidade profissional) como do massacre do próprio sexo (de modo a fazer concordar um género e um sexo). É necessário, para a protagonista, terraplanar-se, fazer do seu corpo uma tábua rasa onde possa reiniciar uma história pessoal. Mas esse processo é, como já se percebeu, auto-destrutivo e como tal arrepiante – especialmente para aqueles, como eu e o realizador, vivem alegremente dentro das suas formas (pondo em termos próprios, pessoas cis). Mas é exactamente na construção dessa empatia que Girl se encontra (com o espectador, desencontrando-se, talvez, com quem procura representar).

Ricardo Vieira Lisboa · Em Dezembro 12, 2018, À Pala de Walsh

girl2018

Lukas Dhont: "Girl tem um efeito visceral!"

O realizador belga do recém-estreado Girl conta ao DN a sensação de ser a nova coqueluche do cinema europeu. Lukas Dohnt confessa o orgulho por ter criado um "agrada-multidões" que coloca o dedo na ferida nas questões do transgénero.

Numa altura em que o cinema e o entretenimento em geral (em Londres, no West End, um dos maiores sucessos é o musical Jamie, sobre um adolescente de Sheffield que se torna drag queen tornam acessíveis temas tabu como a homossexualidade entre os adolescentes, surge Girl, de Lukas Dhont, que gira em torno de uma história verdadeira de um rapaz bailarino que luta para mudar de sexo. O filme é baseado numa história verdadeira e é já um conto de bandeira pelos direitos da comunidade transgender.

Sensível (tem coragem para estar sempre à altura da personagem) mas também maniqueísta (ao qual não será indiferente todo aquele artificialismo de uma câmara algo exibicionista), Girl é já um dos filmes mais premiados do ano, após ter recebido a Câmara de Ouro (melhor primeira obra) em Cannes. Em Portugal foi estreado no último Queerlisboa, onde acabou por não ter muito impacto mediático.

Dhont filma a dolorosa experiência de descobrirmos o corpo errado, ou seja, as dores de crescimento de uma jovem no corpo de um rapaz. Victor quer ser Lara e é no ballet que quer assumir a sua diferença, mesmo tendo um pénis pelo meio. Pelo meio, vai ter de se esforçar nos ensaios de um ballet e adaptar-se à sua condição num meio social e familiar que pode não estar preparado para a mudança de sexo, não obstante o apoio do pai e do seu irmão mais novo. Ao mesmo tempo que tenta mudar de sexo, Victor/Lara começa a perceber o que é ser uma mulher.

Goste-se ou não, é um filme fundamental para afastar preconceitos num tema que em Portugal ainda polariza muito. Girl é um testemunho de combate sobre o direito de sermos livres e donos do nosso corpo e sexualidade. Está nomeado ao Golden Globe de melhor filme estrangeiro e deverá estar na corrida dos Óscares na mesma categoria, mesmo quando já se anuncia o seu lançamento na América na Netflix, já em janeiro.

Na história verdadeira, que o realizador descobriu num artigo, a bailarina chama-se Nora Monsecour e curiosamente não é bailarina clássica mas sim "performer" de dança moderna.

Em Cannes sei que dormiu na sessão dos concorrentes da Câmara de Ouro durante a projeção de gala de Han Solo- Uma História de Star Wars, de Ron Howard...

Ah, sim. Adormeci, foi uma bela soneca! O filme é tão aborrecido. Olhei para o meu lado e toda a gente estava a passar pelas brasas! Quando estávamos a escrever Girl, uma das nossas preocupações era fazer um filme que nunca fosse secante.

Talvez por isso haja sempre um trabalho constante com a banda-sonora, como se fosse uma experiência para os sentidos...

Queria precisamente isso. Falei com todos os membros da minha equipa e o nosso mote foi dar ao espetador uma experiência física. Como se transmite isso? O desafio era a forma e o conteúdo estarem alinhados. O tom passava mesmo pela forma e Girl é um filme sobre a nossa relação com o corpo. E isso pode ser tão belo mas também tão destruidor... A dificuldade era passar isso como experiência sensorial. Com a música queríamos transmitir a sensação da pele cortada.

Como assim?

Fomos à procura de sons instrumentais que sugerissem coisas afiadas. Para além da música, queríamos ir pela questão física.

Filma uma história verdadeira, mas prefere ir sempre para onde nos leva a ficção.

Sim, não queríamos dar voz às opiniões tão "demodé", tão século XIX sobre género. Isso já está feito e conhecemos de ginjeira essas vozes de antagonismo que prevaleciam na história verídica. Decidimos então afastar os vilões.

Ao fim ao cabo, esta personagem acaba por ser uma criação sua.

Sim, ela é o meu ponto de vista. Por outro lado, ela é mesmo Nora, mas aqui o verdadeiro vilão é a sua própria negação com o seu corpo. Quando a conheci, dizia-me muitas vezes: "só quero ser uma rapariga". Isso é um fator com o qual muitos se podem reconhecer. Pessoalmente, quando estava a crescer, odiava-me por ser gay. Apanhei com o ódio da sociedade e deixei-me contaminar por ele. É o que lhe digo: esta história vai bater na identificação de muitos, em especial da comunidade LGBT. Diria que é mesmo muito importante falar desse auto-ódio. Mas creio que a personagem é muito complexa: acaba por não se vitimizar e nem está em guerra contra a sociedade, apenas com ela própria. Dessa maneira, o filme ficou muito mais humano.


Como é que descobriu este ator, o Victor Polster?

Ele é espantoso! Foi o maior presente que recebemos. Quando estávamos a escrever o papel pensámos que nunca iríamos encontrar esta bailarina. Brincávamos inclusive que teríamos de recorrer a uma atriz experiente de 45 anos e, depois, arranjar um artista de maquilhagem genial!

Ele veio da dança clássica e felizmente também tinha o dom de representar. Sabe se agora ele vai querer seguir a via da interpretação?

Penso que sim! Trata-se de um rapaz muito maduro e capaz de perceber a complexidade de um papel. O Victor tem todos os instrumentos de um ator. Mais, tem também uma empatia do outro mundo. Por outro lado, quer continuar a dançar e creio que o seu foco tem de ser por aí. De momento, o que precisa é de ser bem orientado.

O Lukas também não precisa de uma certa orientação agora, sobretudo depois do sucesso no Festival de Cannes?

Sim! Apoio-me no meu argumentista. Ele faz com que não fique completamente insano com tanta aclamação! O que se passa é que estamos já a escrever mais um filme e, estando tão concentrados ,acho que perco o pé em tudo o que se passa à volta de Girl. Essa dificuldade de estarmos a escrever um filme deixa-me muito com os pés na terra. O próximo será muito diferente...

Por outro lado, faz questão de jogar esse jogo da temporada dos prémios e tem estado em quase todos os festivais...Falhou apenas o Queer Lisboa.

Sim. Estou muito orgulhoso de Girl, se o abandonasse nesta altura seria cruel, sendo que acredito que o filme possa vir a ser bastante popular.

Vem da Bélgica, o país dos irmãos Dardenne, porventura os pais de um certo realismo social no cinema europeu. Aqui dá-me ideia que convoca essa sensação do real mas com todos e mais alguns mecanismos cinematográficos...

Sim, encontrei o realismo pós-Dardenne! (risos)Mas sinto que os filmes deles estão a ficar menos crus. Na escola aprendi cinema que combinava ficção e documentário. Creio que isso está patente no estilo do filme. Não sei se posso dizer isto, mas está lá a assinatura que quero colocar no cinema. Por um lado, está a encenação de um certo tipo de intimismo e realismo, mas por outro, uma aposta estética disso mesmo. E é claro que me sinto influenciado pelos Dardenne, eles são uns mestres nesse estilo do docudrama, mas não quero ser um sociorealista. Quero manipular, quero um outro estilo. Sou fã dos Dardenne mas a linguagem deles não é para mim. Raios! Eles já o fizeram, não quero fazer o mesmo. Encontrei em Girl uma maneira de filmar que vou querer seguir no futuro.

Em Lisboa, no Queer, o filme venceu o prémio do público. Parece que Girl toca realmente as pessoas e há até relatos de espetadores a reagir com dor física em certos momentos...

É sempre assim! As pessoas sentem corporalmente que algo vai acontecer e querem rejeitar esse momento que agora não vamos revelar!! Não mostro nada explicitamente mas o filme tem um efeito visceral.

Diria que é uma obra pudica?

Sim... Mas ainda sobre essa cena já famosa, só posso dizer que para um realizador é uma alegria - forma e conteúdo a convergirem! Ainda ontem soube que uma rapariga desmaiou em pleno cinema...

Rui Pedro Tendinha, em San Sebástian, 14 Dezembro 2018 —15:03, DN Cultura

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