O Espectador Espantado / The Amazed Spectator
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Categoria hospedeira: 2018
Comentário
O Espectador Espantado “obedece” também a uma estética neuro-realista. São imagens mentais que procuram uma correspondência fílmica. Por exemplo, quando cozinhamos, somos capazes de executar as tarefas culinárias, pensar nos ingredientes que precisamos, anotar mentalmente que precisamos de comprar determinado produto em falta, pensar depois em dinheiro e numa conta por pagar, e ao mesmo tempo refletir sobre um texto que estamos a escrever (como este).
Montagem Percepção & Pensamento. É verdade que muitos dos meus filmes exigem uma ginástica mental, é preciso estar em “boa forma” psíquica, o que provoca uma fractura entre diferentes estados de recepção do espectador, sendo que existem espectadores incapazes de lidar com um certo ritmo de montagem, sobretudo em filmes que envolvem pensamentos teóricos.
Isso não quer dizer que eu seja contra os planos-sequência (que podem conter no seu interior todos os elementos da montagem) ou contra os planos que não terminam quando uma personagem sai de campo (tudo depende do som surgir depois dessa saída de campo). O que eu acho (o que a minha sensibilidade dita) é que o prolongar de um plano não aumenta necessariamente o seu entendimento ou fruição.
Isso não quer dizer que uma pessoa precise de fazer sete planos para apertar os atacadores de um sapato, como dizia o João César Monteiro sobre certos filmes que emulavam a estética da publicidade (que por sua vez é uma distorção da estética soviética de montagem).
Espanto & Mutação. Não há uma via única, é certo. Mas basta olhar para um filme do passado para entendermos que a percepção do ritmo evolui com o tempo. A brevidade e a velocidade são hoje elementos essenciais, que no futuro serão cada vez mais predominantes. Um filme feito com a consciência dessa mutação na capacidade de ver imagens em movimento só pode obedecer a essa lógica. Os jovens espectadores de hoje são mutantes, cujo sistema cine-perceptivo é radicalmente diferente dos espectadores dos filmes dos Lumière e Méliès. No cinema (assim como na vida) é cada vez mais difícil regressar ao Estado de Espanto Original, mas é nessa espiral que a viagem deverá ocorrer (um sobe-e-desce, um vai-e-vem entre Espanto e Conhecimento, entre Espectáculo e Pesquisa: criando níveis cada vez mais complexos de espanto, sem esquecer que nada funciona sem a entrega ao outro (filme/espectador) e que isso implica uma transformação do Eu. Nada se cria, nada se vê, nada se ouve, sem transformação.
RECEPÇÃO & YNTERPRETAÇÃO/KONSENSOS & FRAKTURAS/ O ESPANTO DA RE-VISÃO & CINEMA KOMPLEXO. O Espectador Espantado entrou na segunda semana de exibição, provavelmente a última oportunidade para verem o filme em sala (Alvaláxia e Trindade). A reacção ao Espectador Espantado não teve o carácter frakturante de Cinesapiens, que dividiu por completo a crítica internacional. No entanto, logo na sua estreia no Festival de Roterdão, aconteceu algo de extremamente revelador, mostrando até que ponto O Espectador Espantado criou uma fractura semelhante à divisão ficcional da plateia de Cinesapiens, entre Espectadores Crentes e Espectadores Espantados. De todos os filmes exibidos no festival foram escolhidos quatro para serem projectados no cine-museu EYE em Amsterdão. O critério de selecção dos filmes baseava-se nos votos dos espectadores do festival de Roterdão: não se tratava de escolher os filmes mais populares, mas sim aqueles que maior potencial de fractura, isto é, os filmes “extremistas”, aqueles que não deixaram o público indiferente e que tinham obtido o maior número de votos máximos e mínimos. Tratava-se de um prémio anti-populista do público: a clivagem era premiada em vez da unanimidade, provavelmente porque a unanimidade raras vezes promove o pensamento crítico. Lembrei-me da frase de Oscar Wilde, quando soube que O Espectador Espantado fazia parte desses 4 filmes mais amados e odiados: “When the critics disagree the author is in accord with himself”. KAOS & NEURO-ORDEM Participei em debates interessantíssimos sobre a actual condição do espectador de cinema e quando um cineasta me disse que O Espectador Espantado deveria fazer parte do currículo das escolas de cinema, não poderia ter ouvido melhor comentário, do ponto de vista académico. Mas é sempre bom duvidar dos Konsensos, o que não me parece que irá acontecer com este filme: apesar de ter uma leitura simples para o criador (eu), habituado a conviver com aquelas imagens e sons durante anos, para alguns espectadores é de difícil assimilação. Por exemplo, uma crítica suíça, entusiasta do filme, ao moderar a sessão de perguntas e respostas no festival de Basileia, confessou que se sentia incomodada por não conseguir
absorver todas as imagens e sons ao mesmo tempo, sentindo-se frustrada por não compreender tudo, ao que eu lhe respondi que um filme tem de deixar a vontade de lá regressarmos e ao não conseguirmos absorver tudo, se nos interessarmos pelo filme (o que era o caso) seremos recompensados por uma segunda e terceira leitura do filme, que é feito com a intenção de resistir a múltiplas revisitações. O mesmo se passa com um país, uma cidade, ou até mesmo uma pessoa, sempre parcialmente indecifrável num primeiro contacto.. Há portanto quem considere que o ritmo da montagem de filmes como O Espectador Espantado perturbe o entendimento daquilo que é dito. De acordo com este ponto de vista, o ritmo demasiado frenético, e não dá tempo para refletir. Não alinho nesse ponto de vista (que na sua facção extrema é defensor do tal “cinema puro” de longa duração) antes pelo contrário, estou sempre a encontrar nos meus filmes momentos em que não sou surpreendido e cuja função é acessória, isto é planos passíveis de ser cortados ou encurtados, Os meus director’s cut são (ao contrário da tradição) sempre mais curtos que a versão original. E não acredito que, se O Espectador Espantado tivesse mais 20 minutos, seria mais entendível, dado a tendência da (Cine)Natureza para ocupar todo o espaço vazio: um filme orgânico é, para mim, o resultado de um fenómeno de condensação. Procuro a fluidez e a organicidade em movimento. Penso que um filme tem de deixar a vontade de lá regressarmos e ao não conseguirmos absorver tudo, sermos recompensados por uma segunda e terceira leitura. O Espectador Espantado é feito com a intenção de resistir a múltiplas revisitações e de recompensar o espectador que revisite o filme. A frase de Almada Negreiros “Todos os meus livros devem ser lidos pelo menos duas vezes para os muito inteligentes e daqui para baixo é sempre a dobrar” quer dizer apenas que uma obra de arte não se deve esgotar numa primeira leitura. Assim sendo é possível ser espantado numa segunda (e terceira, etc.) visão (e audição) de um filme. É o que chamo de cinema complexo, impossível de absorver numa só recepção. São filmes que pedem e ao espectador um regresso e dizem-lhe: “Não me vejas uma só vez, faz-me companhia, vais ver que não te arrependes e que surpreenderei com novidades inesperadas, sob a superfície.” Para entendermos um filme complexo teremos de o visionar repetidas vezes, o que não quer dizer que não se possa fruir logo num primeiro visionamento: tal como alguém com simpatizamos num primeiro encontro e que nos provoca a curiosidade de saber mais sobre essa pessoa. Pela minha parte, não sinto necessidade de compreender e assimilar um filme na sua integralidade num primeiro visionamento, e penso que os melhores filmes são aqueles que resistem à interpretação imediata de todos os seus elementos. Formas orgânicas, que encerram mistérios. E é essa a vontade expressa de toda a minha filmografia: a de provocar no espectador por um lado espanto, por outro, e uma nostalgia, uma nostalgia instantânea, que lhe crie a vontade de regressar a esse espanto, com uma nova consciência do filme. Nesse regresso, o espanto do espectador estará nos detalhes e nos significados e associações de sentidos (som, texto e imagem) que lhe passaram desapercebidos. E não acredito que, se O Espectador Espantado tivesse mais 20 minutos seria mais entendível, dado a tendência da Natureza para ocupar todo o espaço vazio: um filme orgânico é, para mim, o resultado de um fenómeno de condensação. A (aparente) incomunicabilidade ou distorção da comunicação é apenas um dos pontos de vista possíveis do espectador, pelo que procuro a fluidez e a organicidade. Em movimento. Sem fazer Koncessões, não tenho outro remédio senão seguir o meu Kaminho…Magnétyko.
Edgar Pêra
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