A Semente do Figo Sagrado
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Categoria hospedeira: Programação
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in Ciclo do mês
DIA 6 MAR | IPDJ | 21H30
A SEMENTE DO FIGO SAGRADO
Mohammad Rasoulof, Irão, 2024, 168’, M/14
sinopse, trailer e ficha técnica: aqui
nota do realizador
Após There Is No Evil – O Mal Não Existe, o meu filme anterior (Urso de Ouro no Festival de Berlim de 2020), demorei quatro anos a lançar-me num novo projecto. Ao longo dos anos, escrevi vários argumentos, mas o que me levou finalmente ao argumento de A Semente do Figo Sagrado foi uma nova detenção no Verão de 2022. Desta vez, a minha experiência na prisão foi única, porque coincidiu com o início do movimento “Mulher, Vida, Liberdade” no Irão. Acompanhei, com outros prisioneiros políticos, as mudanças sociais a partir do interior da prisão. À medida que as manifestações assumiam uma dimensão inesperada, ficámos impressionados com a amplitude dos protestos e a coragem das mulheres.
Quando fui libertado da prisão, a questão crucial foi: sobre o que é que devo fazer um filme agora? Essa questão ocupava todos os meus pensamentos. Lembrei-me de uma confissão que me foi feita por um funcionário da prisão e que me ficou na memória: em plena repressão generalizada do movimento “Mulher, Vida, Liberdade”, quando visitava as celas dos presos políticos, este homem chamou-me à parte para me dizer que se queria enforcar em frente à entrada da prisão. Ele sofria intensos remorsos e não se conseguia libertar do ódio que sentia pelo seu trabalho. Histórias como esta convencem-me de que o movimento das mulheres no Irão acabará por prevalecer e alcançar os seus objectivos. As repressões podem temporariamente manter a situação sob controlo para o governo, mas, no final, o movimento triunfará.
Assim que fui libertado, quis realizar um novo filme para contribuir para esse esforço. Mas não é fácil reunir pessoas dispostas a assumir os riscos de um projecto deste tipo.
Demorei vários meses para reunir o elenco e a equipa. O medo de ser identificado e detido lança uma sombra sobre tudo. Mas é sempre possível encontrar soluções. Tínhamos uma equipa reduzida e equipamento técnico mínimo, mas a competência do director de fotografia e dos seus assistentes compensou essas limitações. Não consigo explicar como, mas conseguimos contornar o sistema de censura. O governo não consegue controlar tudo. Ao intimidar e atemorizar as pessoas, tentam dar a impressão de que têm tudo sob controlo, mas esse método é uma granada ensurdecedora cujo impacto se limita ao ruído que assusta. E, no final, a coragem da minha equipa foi a força motriz que nos permitiu concluir este filme.
A escolha do elenco foi complicada. Não podíamos realizar um casting amplo, porque isso implicaria informar muitas pessoas, e a notícia de que um filme estava a ser preparado acabaria por se espalhar gradualmente… Por isso, contactámos as pessoas uma a uma. Tínhamos de adivinhar quem, para além das suas competências artísticas, teria a vontade e a coragem de protagonizar um filme destes. É delicado saber a quem recorrer, e isso exige muita confiança de todas as partes.
Para os dois actores que interpretam os pais, foi relativamente simples. Para além de ser uma excelente actriz, Soheila Golestani (Najmeh) assumiu uma posição política e social clara a favor do movimento “Mulher, Vida, Liberdade”. Ela foi presa, mas isso não a impediu de continuar a defender as suas posições. Quanto a Missagh Zareh (Iman), já tinha trabalhado com ele no meu filme A Man of Integrity, e desde então aguardávamos a oportunidade de colaborar novamente. Eu sabia que há muito tempo que ele se recusava a trabalhar para o cinema oficial iraniano, em protesto contra a censura.
Relativamente às raparigas, foi mais complicado. Não queria recorrer a adolescentes que poderia colocar em perigo sem que estivessem verdadeiramente conscientes dos riscos envolvidos. Queria actrizes intelectualmente maturas e que estivessem familiarizadas com a pressão exercida pelos serviços de informação. Setareh Maleki (Sana) e Mahsa Rostami (Revzan) estão relativamente distantes dos papéis que desempenham em termos de idade, mas a sua capacidade de entrar na pele de uma adolescente é espantosa. Adorei trabalhar com elas.
É claro que não sou o único a sentir estas dificuldades. Os meus colegas cineastas enfrentam as mesmas circunstâncias de trabalho difíceis e a forte pressão das forças de segurança. Estão proibidos de sair do país e ameaçados de prisão, simplesmente por colaborarem numa criação artística. Tal como na Idade Média, os tribunais revolucionários abriram processos contra eles. O âmbito da repressão e da censura foi alargado a todas as formas de arte. É de uma violência indescritível. As organizações internacionais não podem ficar em silêncio.
O actual regime iraniano só se mantém no poder através da violência que inflige ao seu próprio povo. Neste sentido, a arma no meu filme é uma metáfora do poder no seu sentido mais lato. Ela permite também que os protagonistas revelem os seus segredos, que surgem progressivamente, com consequências trágicas.
Há muitos relatos de pessoas poderosas que matam os seus entes queridos para garantir a sua própria segurança. Mas, no Irão, desde a revolução de 1979, há histórias que elevam o infanticídio, o fratricídio e a busca do martírio a valores quase religiosos, movidos pelo fanatismo e pela subserviência a uma ideologia. A submissão incondicional às instituições religiosas e políticas no poder criou profundas divisões no seio das famílias. Mas, quando olho para as manifestações lideradas pela jovem geração, parece-me que esta escolheu um caminho diferente, mais aberto, para enfrentar os opressores.
Durante muito tempo, vivi numa ilha no sul do Irão. Nesta ilha, existem velhas figueiras selvagens cujo nome científico é “ficus religiosa”. O ciclo de vida desta árvore inspirou-me. As suas sementes, contidas nos excrementos de aves, caem sobre outras árvores. Germinam nos interstícios dos ramos e as raízes crescem em direcção ao solo. Novos ramos surgem e envolvem o tronco da árvore hospedeira até a estrangular. A figueira selvagem ergue-se finalmente, liberta do seu suporte. - Mohammad Rasoulof
notas críticas
Um perturbante exercício de suspense sobre a vulnerabilidade dos laços familiares. João Lopes, DN
Um ágil e tenebroso retrato do patriarcado religioso e da misoginia que ainda impera. Inês N. Lourenço, A Grande Ilusão
É universalmente uma grande obra de cinema, que faz jus à melhor tradição do cinema iraniano. Manuel Halpern, Visão
Rasoulof constrói uma alegoria extraordinariamente cativante sobre os custos corruptores do poder e a repressão das mulheres num patriarcado religioso que esmaga as pessoas que afirma proteger. IndieWire (Ryan Lattanzio) ★★★★★
O filme é uma parábola em forma de thriller hipnotizante e cativante no qual a paranóia, a misoginia e a fúria do Estado iraniano são mapeados perfeitamente numa família banal. The Telegraph (Robbie Collin) ★★★★★
Rasoulof, que agora fugiu da sua terra natal e se encontra escondido, transmitiu uma mensagem urgente das linhas da frente do Irão, envolta numa comédia familiar astuciosamente divertida e gradualmente contaminada por uma paranóia sufocante. Time Out (Phil de Semlyen) ★★★★★
Devido à sua franqueza audaz, mas sobretudo por causa da sua profundidade, A Semente do Figo Sagrado merece admiração e um convite à reflexão porque representa, com grande respeito pela humanidade de todos, o poder de uma opressão mesquinha, que se estende da corrupção dos juízes à falência da família, do apetite judicial pela morte ao fanatismo assassino. Positif (Alain Masson) ★★★★★
Tanto pela sua visão elevada como pela sua inspiração visual, esta denúncia do poder iraniano em forma de tragédia é um dos grandes filmes do nosso tempo. Transfuge (Frédéric Mercier) ★★★★★
Um thriller de uma incrível força política. Télérama (Jacques Morice) ★★★★★
É este contrapeso ao poder supremo do páter-famílias que a economia espacial e narrativa astuciosa de A Semente do Figo Sagrado orquestra, com os seus vasos comunicantes a conferir ao magistrado ora uma reserva interior que ele oculta do seu gineceu familiar, ora um abismo de solidão. Cahiers du Cinéma (Élie Raufaste) ★★★★
Na sua ficção clandestinamente filmada sobre uma família dividida pela revolta «Mulher, Vida, Liberdade», o realizador Mohammad Rasoulof oscila entre naturalismo e horror. Libération (Sonya Faure) ★★★★
Entrevista: Mohammad Rasoulof Sobre a Luta Pela Liberdade com “A Semente do Figo Sagrado” – Slant Magazine (Marshall Shaffer)
[...] Falei com Rasoulof antes da estreia de A Semente do Figo Sagrado. A nossa conversa foi sobre se os eventos retratados no filme reflectem um novo desenvolvimento na batalha do povo iraniano contra o totalitarismo religioso; porque sentiu a necessidade de incluir tanto contexto na história; e onde ele vai buscar a determinação para continuar a contar histórias depois de múltiplas detenções.
Quais são as atitudes culturais dominantes em relação às armas no Irão? De uma perspectiva norte-americana, elas são perturbadoramente comuns, então estou curioso para saber o que significa a presença duma arma no contexto do filme.
Ter uma arma no Irão é algo muito especial. Não é de todo comum. Na narrativa do filme, tem um significado específico, e torna-se um símbolo de poder.
No filme, como se compara a ferramentas como o telemóvel ou a câmara? Esses objectos também se tornam símbolos de poder.
As câmaras, os telemóveis e as redes sociais têm um significado específico na narrativa, como têm no país. Tornam-se naquilo que garante, essencialmente, a organização dos protestos. E num lugar como o Irão, onde são estritamente monitorizadas e reprimidas pelo estado, são o que permitem que as pessoas se juntem.
A fábula inicial do figo sagrado sugere um processo no qual as sementes germinam e estrangulam o seu hóspede. De tudo aquilo que mostra em A Semente do Figo Sagrado, quanto se refere somente à rebelião natural das gerações mais jovens, e de que maneira a influência do movimento “Mulher, Vida, Liberdade” representou um desenvolvimento único?
“Mulher, Vida, Liberdade” é um elo numa grande cadeia de movimentos pelos direitos das mulheres no Irão que se estende muito mais. Mas, ao mesmo tempo, enquanto movimento feminista que se formou a partir do homicídio de Mahsa Amini, representa e traz ao de cima reivindicações que vão para além da agenda feminista e direitos das mulheres. É realmente um movimento que está relacionado com os direitos humanos de forma mais geral. A importância das redes sociais e a forma como permitiram este movimento, enquanto são algo recente em si mesmas, não significa que o movimento seja novo. Está-se, simplesmente, a manifestar de novas formas.
Fez uma piada quando introduziu o filme no Festival de Nova Iorque ao dizer que, se soubesse que iria ser exibido às 20h30, talvez o tivesse feito mais curto. Mas tenho dificuldades em pensar que partes do filme cortaria porque todo o seu desenvolvimento torna o acto final tão tenso. Como desenvolveu a escala e a estrutura do filme?
O acto de contar histórias sobre uma sociedade oprimida pelo totalitarismo é muito complexa porque, para muitas pessoas dentro da sociedade, as várias ferramentas de opressão já se tornaram banais. Quando se quer contar uma história destas para pessoas que não estão necessariamente familiarizadas com esta sociedade e com as formas como este totalitarismo específico funciona, é mesmo necessário estabelecer o contexto para garantir que o público está familiarizado com a atmosfera geral.
Por exemplo, hoje, em 2024, a forma como pode ser atribuído significado político à cor do cabelo ou à forma como uma rapariga se quer vestir é muito rara à escala mundial. Não é algo necessariamente óbvio. Claro, há muitos tipos diferentes de totalitarismo hoje no mundo, e o totalitarismo da República Islâmica, com os seus elementos religiosos, parece-me ser muito único, ao mesmo tempo que tem vários pontos em comum com outras formas totalitárias de poder.
Eu quis encaixar isso no primeiro plano da história que queria contar. Também quis estar atento ao conflito entre gerações diferentes e à forma como olham para a vida. Para além disso, quis olhar para a forma como as relações dentro de uma família podem chegar a um ponto de rotura, o quão frágeis podem ser, e o quão próximas do colapso podem estar em circunstâncias semelhantes. Isto está muito relacionado com as dinâmicas psicológicas duma família. Tudo isto para explicar porque tentei colocar todos estes elementos em relação no filme, o que obrigou a uma certa duração! [ri-se] E gostaria de ressalvar que isto é realmente uma história sobre uma família e as suas dinâmicas relacionais, que podem ter várias camadas diferentes. E através de todas estas camadas, é possível alcançar outros significados e sentidos.
Já referiu como o seu estilo alegórico foi motivado pelo medo e autocensura. Isso dá-lhe uma certa compreensão de Najmeh, a figura maternal, no filme?
O comportamento de Najmeh tem raízes psicológicas. Ela menciona o seu pai, a sua família, e um sentimento de insegurança enquanto crescia. Este é o motivo principal que a leva a estar sempre a tentar garantir a segurança da sua família. É por isso que, às vezes, sentimos que ela própria se tornou uma agente dentro da estrutura patriarcal que domina a sua família. Ela representa um género muito típico de mulher e mãe iraniana. De facto, conheço-as muito bem. Conheço muitas delas. Ela lembra-me bastante uma tia paterna que tive. Ela era quase uma equilibrista, inclinando um pouco para um lado, um pouco para o outro, tentando de todas as formas manter um certo equilíbrio e segurança, tanto para ela como para a sua família. E, de facto, Najmeh muda de ideias e abandona a sua visão de mundo inicial com grande dificuldade ao longo do filme.
Como decidiu o triunfo agridoce do final do filme? As mulheres escapam à ameaça imediata, mas a forma como a mão emerge dos escombros, com a arma ao lado, sugere que o perigo não está enterrado para sempre.
Existe uma luta antiga entre tradição e modernidade, eu acho. A luta entre uma estrutura patriarcal e os direitos das mulheres tem lugar há décadas e talvez há mais de 150 anos.
Obviamente, há alturas nas quais o equilíbrio tende mais para o triunfo do progresso moderno. E às vezes, tende mais para o triunfo dos valores tradicionais. Mas eu acho que aquilo que me impressiona a mim e a toda a gente é esta nova geração que nos tem surpreendido a todos.
Olha para A Semente do Figo Sagrado como uma progressão das suas explorações anteriores sobre a forma como estas instituições totalitárias se imprimem nas pessoas? A ideia de que um juiz como Iman poderia levar o seu dever tão longe ao ponto de pôr a sua família em risco é um exemplo bastante extremo do quão longe um regime pode ir.
Primeiro que tudo, a história e o arco narrativo de Iman são baseados em actos e eventos verdadeiros. Como sabe, há muitos crimes de honra no Irão, por exemplo, que são baseados na tradição. Mas a religião também faz parte dessa tradição. Num nível mais profundo, há uma história de assassinatos dentro de famílias, especialmente – mas não só – no início da revolução. Pais a condenar os seus próprios filhos, irmãos a fazer o mesmo um ao outro, tudo por causa de uma ideologia. Isto mostra a extensão [do impacto] que uma ideologia pode ter.
Sentimos que a verdade está connosco, e mostramos o quão comprometidos estamos com uma ideologia por aquilo que demos e pela forma como nos submetemos. Quando acreditamos que estamos certos, temos liberdade para cometer crimes.
Parece que estamos num tempo onde o autoritarismo está em ascendência, e a repressão da expressão artística como aquela que enfrentou só se vai tornar mais comum. Onde encontra a força para manter a resiliência que o faz continuar?
Esta manhã, acordei com a notícia de que um activista político com quem passei algum tempo na prisão no Irão se suicidou em protesto contra as condições actuais ao se atirar duma ponte em Teerão. Eu conhecia-o, e ele não tinha quaisquer problemas mentais ou psicológicos. Ele só queria liberdade. Talvez, ao vivermos num regime autoritário, nos habituemos a querer liberdade. Talvez, ao vivermos num país livre, nos habituemos a ter liberdades pessoais e civis, e de alguma forma a menosprezar a sua importância como consequência. Eu penso que retiro a minha sanidade, de facto, de um desejo de liberdade, mas também de um desejo de preservar a minha dignidade.