O Nosso Tempo
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Categoria hospedeira: Ciclo do mês
Devido à inclusão de Faro na lista dos concelhos com risco elevado, a sessão terá novo horário.
19 NOV (5ªF) | IPDJ | 19h30
sinopse, ficha técnica e trailer: aqui
críticas
Amor e sexo, fidelidade e traição em paisagens mexicanas
Com assinatura de Carlos Reygadas, um dos nomes mais internacionais do atual cinema mexicano, aí está "O Nosso Tempo", retrato íntimo de uma crise conjugal em que o cineasta e a sua mulher, Natalia López, interpretam as personagens centrais.
[...]
Acontece que, desde a sua longa-metragem de estreia, Japón (2002), o universo temático de Reygadas corresponde a uma espécie de sensibilidade "niilista" que, hoje em dia, encontra acolhimento fácil em muitos mercados. Dito de forma esquemática (porque estamos perante um pensamento esquemático), a sua visão relança uma certa ideologia "new age", segundo a qual todas as relações humanas estão assombradas pelos equívocos do sexo e do amor, nada mais restando a não ser a verdade telúrica da natureza. Com uma moral insólita: todos são culpados da sua própria inocência...
O Nosso Tempo não escapa a tal sistematização. Nele encontramos um casal, proprietário de um enorme rancho cujo principal negócio é a criação de touros: Esther assegura a gestão, enquanto o marido, Juan, concilia a escolha e tratamento dos animais com o trabalho de poeta. Vivem de acordo com um pacto conjugal segundo o qual as questões de fidelidade e traição seriam superadas pelo compromisso de cada um se dispor a aceitar as eventuais ligações amorosas do outro... O que, enfim, não corre como desejaram ou imaginaram. Por momentos, podemos ser levados a supor que Reygadas está a tentar refazer uma matriz dramática que Agnès Varda experimentou, com sublimes resultados, em A Felicidade (1965). Ou até que a desmontagem dos laços conjugais possa envolver o misto de realismo e onirismo que encontramos em Belle de Jour (1967), de Luis Buñuel. Verdade seja dita, Reygadas não está a copiar ninguém. Terá mesmo assumido O Nosso Tempo como um dos seus investimentos mais pessoais, tanto mais que é ele que compõe a personagem de Juan, com Natalia López, sua mulher, a interpretar Esther, ela que já tinha sido dirigida pelo marido em Luz Silenciosa (2007) e Post Tenebras Lux (2012). Isto sem esquecer que os filhos do casal representam os filhos de Esther e Juan.
[...] há cenas que Reygadas concebe como verdadeiros desafios dramáticos e narrativos, criando acontecimentos visceralmente cinematográficos que dispensam a "ilustração" de ideias mais ou menos simplistas. [...]
Mesmo considerando que O Nosso Tempo trata as personagens secundárias de modo mais ou menos "decorativo", faltando-lhe algum rigor e contenção na gestão dos tempos narrativos, creio que estamos, afinal, perante um dos trabalhos mais coerentes de Reygadas (a par de Luz Silenciosa, tendo como pano de fundo uma comunidade menonita no México). Até porque, por uma vez, os elementos naturais são tratados como pontuações dramáticas fundamentais, sensuais e enigmáticas, para o desenvolvimento da intriga, instalando uma curiosa e envolvente sensação de ficção "documental".
João Lopes, dn
O cineasta mexicano marca o seu território de forma violenta, poderosa, como um touro, animal de que muito gosta. Nuestro Tiempo, em que um casal se debate com os sentimentos na sua relação aberta, reclama isso para o cinema: a destruição da prosa, a experiência do tempo.
Sobre os touros, diz Carlos Reygadas que são animais fora de moda. Hoje “os miúdos preferem golfinhos” ou criaturas “da mitologia”. Os touros são gordos, territoriais, violentos, poderosos. “Eu adoro os touros." O cineasta mexicano filmou 50 horas de touros e de natureza – o digital, com que pela primeira vez trabalhou numa longa-metragem, permitiu-lho – para o seu último filme, Nuestro Tiempo, que acaba com o animal no seu território. O touro “está”, como as árvores e as águas. Como as crianças com que o filme começa: esplêndida sequência de paraíso de sol e de lama, todo o céu e toda a terra dentro do ecrã. Entre esse início – que nos filmes do mexicano não é só um princípio de filme, é o início do mundo, por isso as crianças são as primeiras a experimentar a existência –, e aquele final em que o touro certifica o seu território, há “trouble in paradise” no mundo dos adultos.
Um casal de rancheiros – ele é poeta, é ela que se ocupa da gestão da propriedade – vê a sua relação ser perturbada pela intromissão de um dos cowboys do rancho. Ele é Juan (Carlos Reygadas), ela é Esther (Natalia López, na vida real a mulher de Reygadas). Os dois trabalham a prática de um relacionamento aberto a partir do momento em que Esther se envolve com Phil (Phil Burgers). Para acrescentar ao retrato de família: os filhos do casal de Nuestro Tiempo são os filhos do casal Reygadas na realidade. Mas que isto não sirva, diz o realizador de Batalha no Céu (2005), Luz Silenciosa (2007) e Post Tenebras Lux (Prémio de Melhor Realização em Cannes 2012), para extrapolações biográficas ou divagações sobre a exposição da intimidade. Porque “intimidade”, para ele, não é o corpo, a nudez ou o sexo, isso não lhe custa expor; a intimidade é o que está para além disso. Procuraram actores para os papéis, não os encontraram, acharam que se fossem eles próprios a interpretar as personagens seria uma forma imediata, concreta, de “serem” pais de cinema daquelas crianças – porque seriam sempre os seus filhos a entrar no filme, Reygadas não compra as negociações com os pais de miúdos contratados para serem actores. Nuestro Tiempo é então um fantasma de home movie – e um fantasma de western, sol e toiros.
Juan e Esther debatem-se entre a nitidez das suas teorias e a neblina dos sentimentos. Dir-se-ia um faits-divers magro, linear e até previsível na sucessão de acontecimentos. Se fosse isso que interessasse. Mas não é, interessam a chuva e a natureza, falam elas pelos acontecimentos. É um filme de Carlos Reygadas. Há três ou quatro momentos de Nuestro Tiempo, na forma como as imagens se associam – é espantoso, parecem ter vida própria... – para nos envolverem no tempo psicológico, emotivo, das personagens, que são a coisa mais livre, mais orgulhosa que se viu por Veneza e que não se vê no cinema “narrativo”. Com essas sequências, em que se estoira com o filme como narrativa a informar o espectador dos acontecimentos – quando a câmara mergulha no rumor da Cidade do México, quando pesquisa o interior da maquinaria de um automóvel ou quando acompanha a fase final de um voo, a aterragem, tudo durante momentos de crise interior das personagens... –, Reygadas amplia a sua condição de cineasta que marca o território de forma violenta, poderosa, marimbando-se para correcções de sintaxe, para uma paradigmática disposição das palavras na frase e das frases no discurso, destruindo a prosa.
Às tantas, e isto vem a propósito, respondendo Reygadas em conferência de imprensa a uma pergunta sobre o título, porque parece a reclamação de um território para o (seu) cinema, o realizador citou Tarkovsky e o esculpir do tempo. Assumiu que não lhe interessa, e lamenta que isso ainda interesse a realizadores de filmes, que se faça cinema a dar informação para orientar o espectador, que se filme para fazer uma história continuar. A literatura faz isso melhor, argumentou, por que é que o cinema fica apenas por aí?"
Vasco Câmara, Público