Ran Os Senhores da Guerra / Ran

 DIA 7 | 21h30 | IPDJ

RAN - OS SENHORES DA GUERRA, Akira Kurosawa, Japão/França, 1985, 163’, M/12

trailer, sinopse e ficha técnica: aqui

críticas

Tragédia
É o apogeu de Akira Kurisawa e volat às salas numa edição restaurada. Revisitemo-lo – como quem vai à missa, como quem vai à festa.
Tem 162 minutos e é um épico japonês feito no tempo em que exércitos e batalhas, quando abriam o nosso campo de visão para plano geral, tinham mesmo milhares de homens e cavalos e armaduras em equivalente número, não eram 'desenhos animados' pelo ventre dos computadores; e as bandeiras, vermelhas ou negras, tinham mesmo essa cor, não eram pintalgadas, pixel a pixel, pelos magos operários dos efeitos especiais. Ou seja: a imagem continha uma verdade ontológica na sua relação com o real. É isso que dá a esta tragédia grandiosa uma força irresistível que faz com que os nossos olhos se não afastem do ecrã? Não direi tanto, embora a aura do máximo imperador do cinema japonês — Akira Kurosawa  - também se funda na sua capacidade para gerir os mais espetaculares meios de que o cinema pôde dispor. Porque, é claro, o que mais conta é o trágico destino daquele senhor feudal — Lord Hidetora Ichimonji (que Tatsuya Nakadai interpreta superlativamente) — que comete o insensato pecado de ceder o seu poder e património e de dividir o reino pelos seus três filhos. Ele parece não saber duas verdades básicas: o Poder não se cede, o Poder não se divide. Ao fazê-lo, ele cria as condições para que os filhos se digladiem entre si e para que se voltem contra o pai. Ao fazê-lo, Hidetora precipita a instalação do caos. A história de "Ran" vai, evidentemente, beber ao "Rei Lear" de Shakespeare, com as devidas adaptações e apenas uma importante alteração, a introdução de um pérfido personagem feminino -  Kaede (Mieko Harada) , nora de Hidetora e mulher do seu filho primogénito — que se revela como a maléfica força por detrás de todas as traições e, em última instância, a agente que não procura o Poder, mas a desordem, o colapso, o inferno. "Ran" foi o apogeu final da obra de Kurosawa, cuja capacidade de filmar empalidecera nos anos 70 e só se revigorou graças ao apoio dos seus grandes admiradores americanos George Lucas e Francis Ford Coppola, que praticamente avalizaram o filme anterior — "Kagemusha" — junto dos financiadores internacionais. O filme ganharia a Palma de Ouro, em Cannes, e teria duas nomeações para os Óscares, um sucesso internacional que criou as condições para "Ran". Todo o sangue, toda a fúria, todo o esplendor plástico, todo o patético que o desamparo humano convoca estão neste filme, belo e terrível como um pôr do sol num campo de batalha depois do fragor se extinguir.
Jorge Leitão Ramos, Expresso

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A guerra do trono
Em 1985, Kurosawa filmou uma versão sui generis do Rei Lear de Shakespeare. Agora em cópia restaurada, Ran confirma-se como obra maior de uma carreira que não foi parca em clássicos.
Raros são os filmes que, não sendo os últimos, respiram tanto um perfil de testamento como este Ran. Em rigor, Akira Kurosawa (1910-1998) ainda faria mais três filmes depois: Sonhos (1990), Rapsódia em Agosto (1991) e Ainda Não! (1993). Nenhum deles, contudo, tem o "peso", a gravitas da história do senhor Hidetora, que tinha três filhos e lhes entregou as chaves do reino — e também da destruição do que tanto sangue tinha custado a ganhar. Um velho que vê o mundo a mudar e, julgando poder evitar a dissolução do reino, acaba por acelerá-la enquanto ganha consciência da transitoriedade do poder.
Ran, palavra japonesa que significa "caos", é a história do velho Lear de Shakespeare, o "leão no Inverno" que desbarata o reino, que Kurosawa transpôs para o Japão medieval. É uma tragédia tolhida pelos códigos feudais que o mestre japonês filmou em exteriores nipónicos usados como um palco de teatro, com a imemorial natureza a servir de cenário aos esforços fúteis dos homens para a conquistarem (quantas ruínas de edifícios humanos aqui se vêem). A meio caminho entre uma gloriosa explosão de simbolismo cromático que remete para a opulência operática de um Visconti, por exemplo, e a estilização codificada e depurada do teatro Noh (muito visível nas extraordinárias interpretações de Tatsuya Nakadai e Mieko Harada), Ran corre da luz para a sombra, do sol para a tempestade, da vida para a aridez, à medida que a casa de Ichimonji se devora autofagicamente com os filhos a lutarem entre si pelo título feudal.
Falámos acima de "teatro" mas, se é verdade que há uma dimensão teatral, performativa, no filme, ela não anula — antes amplifica— a magnífica dimensão cinematogáfica de Ran. Basta ver a espantosa sequência do genérico para perceber como tudo está precisamente agendado (Kurosawa é igualmente creditado como montador), como os planos se estendem ou se compactam consoante as necessidades narrativas, como o filme gere magistralmente o tempo para nos instalar no seu interior e para nos dar a medida exacta da tragédia. Ran foi rodado e estreado numa altura em que muitos dos grandes mestres do cinema do século XX encerravam as suas carreiras com filmes que pareciam então extemporâneos e que o tempo veio permitir reavaliar (a Passagem para a Índia de Lean e o Era uma Vez na América de Leone são ambos de 1984, por exemplo), que pediam a grandiosidade de uma sala que hoje já praticamente não existe. Esse crepúsculo é um subtexto indissociável do "fim de uma era"; talvez hoje lhe prestemos uma atenção diferente, e se é verdade que o que Kurosawa fez a seguir era menos "testamentário" do este, a dimensão desmedida, épica de Ran empresta-lhe um carisma especial.
A verdade é que a guerra pelo trono dos Ichimonji não ganhou uma ruga. E Ran recebe, nesta versão restaurada [...], o reconhecimento definitivo como um dos filmes maiores de uma carreira que, entre Rashomon — Nas Portas do Inferno, Os Sete Samurais, Yojimbo o Invencível, Dodeskaden ou Kagemusha —A Sombra do Guerreiro, não foi parca em clássicos. Só falta o ecrã gigante (como o do Mundial onde estreou em 1986) que lhe justiça. Mas isso já seria pedir demais.
Jorge Mourinha, Público