Dogman

 Críticas

Filme brutal, Matteo Garrone arranca esta história de fascínio e medo entre um “monstro” e a sua “vítima”, com paisagem de westernapocalíptico em fundo, ao mecanismo da brutalidade.

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É que uma das notáveis coisas deste filme brutal é Garrone prolongar-lhe a vida arrancando-o ao mecanismo da brutalidade. Há cães ferozes e jaulas, pressente-se que os humanos poderão ser engaiolados, tipificados, mas todo o trabalho, e a conquista do filme, é resgatar a humanidade de uma história de “monstros” e “vítimas” em paisagem de western apocalíptico (Villaggio Coppola, o Monument Valley de Garrone, onde filmara já Gomorra), fazendo do fascínio e medo entre “monstro” e “vítima” um bailado complexo, espesso.

Se no horizonte está sempre a possibilidade de a vítima se tornar monstro, até porque era esse o fait divers sanguinolento de que Garrone e os argumentistas partiram, uma história horrível de vingança, e se os exemplos cinematográficos, de Un borghese piccolo piccolo (Mario Monicelli, 1967) ao Cães de Palha (1971), de Sam Peckinpah, indicavam a Garrone o caminho a seguir, os três anos que o realizador e os argumentistas levaram até à versão final foi o tempo necessário para resistirem à tipificação.

Entretanto Garrone enfeitiçara-se por Marcello Fonte, o seu actor, que interpreta um tratador de cães abusado por um bully cocainómano, refém do medo dele e do fascínio por ele, e não menos menosprezado pelo resto da comunidade, que são os cobardes de uma cidade de cowboys. O “dogman” acaba por ser uma personagem típica da comédia italiana, a do tipo que se faz à vida, disposto a todos os compromissos para se desenrascar – logo, os argumentistas assumem que, sendo o cinema uma realidade porosa, a sociedade italiana está de facto ali.

Mas é como se Alberto Sordi encontrasse a poesia lunar de Buster Keaton, o ídolo de Garrone que o cineasta disse ter reencontrado materializado em Marcello Fonte – a costela burlesca já era um dado anterior, uma das versões iniciais do argumento chegou a ser proposta a Roberto Benigni. É como se Garrone ganhasse uma luta, nada fácil à partida, a de evitar que a deformação, a distorção, a pintura expressionista a partir do cinema e da realidade italianas, que são o seu traço, não fossem um atentado à humanidade das personagens.

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Vasco Câmara, Público

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Itália sob o signo do realismo

Internacionalmente conhecido graças ao seu "Gomorra" (2008), Matteo Garrone mantém-se fiel aos pressupostos realistas desse filme — agora, com "Dogman", propõe o retrato de um homem à deriva no seio de um bairro problemático.

Neo-realismo no século XXI? Em termos lineares, a classificação é inadequada, para não dizer absurda. Escusado será lembrar que os filmes de autores como Roberto Rossellini ou Vittorio De Sica, nos anos 40, pós-Segunda Guerra Mundial, pertencem a uma conjuntura (social e artística) que não se repete. Em qualquer caso, há uma pulsão realista que alguns italianos nunca abandonaram.

Cineasta de títulos como "Gomorra" (2008) ou "Reality" (2012), Matteo Garrone mantém-se fiel a uma postura realista, pura e dura, que não desiste de olhar o presente do seu país. Assim é "Dogman", retrato frio e desencantado de um homem que tem uma loja de acolhimento e tratamento de cães, ao mesmo tempo que tenta sobreviver no seio de um bairro (realmente) problemático.

Marcello Fonte, intérprete dessa frágil e solitária personagem central, pode simbolizar a energia vital deste olhar cinematográfico — mereceu, aliás, o reconhecimento do júri de Cannes/2018, recebendo o prémio de melhor interpretação masculina. Por ele passam as emoções mais íntimas, ao mesmo tempo que o reconhecemos como símbolo revelador de um tecido social em trágica convulsão.

Vale a pena referir que este magnífico "Dogman" surge três anos depois de "O Conto dos Contos", por certo um dos empreendimentos mais ambiciosos de Garrone, procurando recuperar a energia fantástica das narrativas de Giambattista Basile (1566-1632). Dir-se-ia que o relativo falhanço (estético e comercial) desse filme levou Garrone a regressar aos mais primitivos pressupostos realistas — face aos resultados, podemos dizer que foi a opção certa.

João Lopes, rtp.cinemax

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