Parasitas

ciclo do mês fevereiro 2020

DIA 4 (terça-feira) | 21h30 | IPDJ

PARASITAS, Bong Joon Ho, Coreia do Sul, 2019, 132', M/14

trailer, sinopse e ficha técnica: aqui

O discreto asco da burguesia
Cruzando géneros e registos, o sul-coreano Bong Joon-ho oferece-nos uma inspiradíssima alegoria social.
É sintomático o movimento de câmara com que arranca a sétima longa de Joon-ho ("Parasitas", Palma de Ouro em Cannes 2019). De facto, o travelling vertical que desce de uma janela situada ao nível do passeio de uma rua até à claustrofóbica cave onde vive uma família de quatro (um casal de meia idade e os seus dois filhos quase adultos); traduz a lógica que rege o filme. A saber, uma lógica bipolar que opõe por sistema estratos espaciais, sociais e biológicos: o em cima e o em baixo, os ricos e os pobres, os hóspedes e os parasitas, o patente e o oculto...
Trata-se de um princípio de organização dos décors e das relações que só se torna claro in media res: nas sequências iniciais, o que cativa Joon-ho é a possibilidade de compor, num tom burlesco e agridoce, o retrato de uma família desempregada que vai tentando fazer face à penúria. Multiplicam-se então as vinhetas que - destilando um humor que tem o raro condão de nos deixar desconfortáveis com o nosso divertimento — ilustram bem a miséria daqueles losers. Pensamos naquela em que os filhos do casal se agacham numa exígua casa de banho para aceder à rede wi-fi dos vizinhos; naquela em que a família se deixa sufocar em casa pelos gases tóxicos que, na rua, são lançados por uma equipa de fumigação ("pode ser que nos vejamos livres dos percevejos sem ter de pagar" , diz o pater familias)... Não é preciso esperar muito, porém, até que a esperança surja no horizonte, sob a forma de uma proposta de trabalho: aquela que é dirigida ao filho por um amigo que o convida a substituí-lo como explicador da filha de um abastado casal da classe média de Seul. É apenas a primeira fase de uma invasão em grande escala: na senda do filho — e apoiando-se em esquemas cada vez mais ardilosos, todos os membros da família arranjarão modo de se infiltrar na casa dos ricos, para aí assumirem um posto de trabalho permanente (o pai como motorista, a mãe como governanta, a irmã como terapeuta). Neste ponto, damos por nós a pensar na desfaçatez com que Joon-ho forja uma espécie de irmão perverso e ideologicamente incorreto da anterior Palma de Ouro ("Shoplifters", de Koreeda) , encenando com graça a colonização da classe média pela classe baixa. Mas o que dá ao filme a sua real força política é a maneira como, após uma revelação surpreendente (sem dizer de mais: há um 'fantasma' escondido naquela imaculada casa burguesa), ele começa a inverter a direção do processo de parasitagem, baralhando as evidências e forçando-nos a perguntar: quem se alimenta de quem, afinal? O exercício seduz pela liberdade com que cruza géneros e registos (da comédia ao terror, e do satírico ao trágico), pela subtileza com que semeia pistas de leitura (o leitmotiv do cheiro) , mas não está isento de problemas. Neste quadro, mais do que a forma como o guião recorre a soluções inverosímeis (a situação que gera o volte-face da ação), o que impede "Parasitas" de voar ainda mais alto é a dinâmica binária da mise en scêne. Isto é: o modo como ela subscreve, por via da construção de um espaço dividido em dois blocos quase estanques (a casa e a cave), uma versão demasiado literal da luta de classes. Estamos perante uma rigidez que Jooh-ho consegue sublimar através de uma série de metáforas que 'poetizam' o filme (a da inundação...), injetando nele uma tristeza que o converte num belíssimo lamento por uma classe condenada à invisibilidade. Chapeau!
Vasco Baptista Marques, Expresso


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