15 AGO - Green Book - Um Guia Para a Vida
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Categoria hospedeira: Mostra ao ar livre
GREEN BOOK - UM GUIA PARA A VIDA (Green Book), Peter Farrelly, US, 2018, 130', M/12
trailer, sinopse e ficha técnica: aqui
Para derrubar o preconceito
Impecavelmente escrito e politicamente oportuno, “Green Book” - nomeado para cinco Óscares – torna-se um filme importante contra o racismo na América. Conversa com o realizador, Peter Farrelly, e com o protagonista, Viggo Mortensen.
A propósito de “Green Book”sito de "Green Book", título original do novo filme de Peter Farrelly ao qual o título português acrescentou "Um Guia Para a Vida", convém explicar que livro é este e por onde nos "guia" ele — porque aquilo que aqui está em causa é uma consequência de toda a história da segregação racial na América do XX. "The Negro Motorist Greer Book” (assim se chamava o livro exatamente) foi criado por Victor H. Green (1892-1960) e publicado pela primeira vez em 1936 para ajudar os poucos condutores negros que, como Green, se aventuravam a percorrer o sul do país ao volante. Livro de conforto e tolerância para ser usado em solo hostil e intolerante até à medulaa, tratava-se, no fundo, de um gua de viagem que cabia no bolso de um blazer e que listava uma minoria de restaurantes, bares, barbearias e estações de serviço que aceitavam servir negros, mais raramente, motéis onde estes podiam pernoitar com as famílias em relativa segurança. E até tinha agências funerárias... O livro "que praticamente ninguém hoje, nem mesmo a população negra, se lembra sequer que existiu" — disse-nos o cineasta no Festival de Zurique, em setembro do ano passado, poucos dias depois da estreia mundial da obra em Toronto — continuou a ser anualmente revisto e publicado (já mesmo depois da morte de Green), e lá surge ele às tantas em 1962, no ano em que este filme começa. James Baldwrin usou-o, assim como Ray Charles. Quem o usou também foi Don Shirley (1927-2013), pianista de jazz com formação clássica (mas, por ser negro, ninguém o deixava tocar Chopin naqueles tempos...) , homem culto e viajado, refinadíssimo, homossexual que nunca se assumiu, e que fez carreira em Nova Iorque.
Em 1962, líder de um trio e já músico consagrado, Shirley mete-se na boca do lobo e dá início, não sem uma certa provocação, a uma série de conçertos agendados pela sua produtora em estados sulistas, acreditando que o alento das performances, para lá do seu valor, talvez pudesse contribuir para mudar certas mentalidades.
Faltava-lhe contudo um motorista branco = que o levasse e lhe servisse também de guarda-costas, e é aqui que entra em cena Tony "Lip" Vallelonga. Tony era um encorpado pai de família ítalo-americano e experiente segurança dos clubes nova-iorquinos da dovvntown, já rodado a chegar a roupa ao pelo dos clientes que passavam das marcas. Não tinha simpatia alguma por negros (facto que o filme faz questão de sublinhar logo no início), mas também não tinha medo de nada e precisava do dinheiro que Shirley estava disposto a pagar-lhe. E "Green Book" começa aqui, dois meses on the road, com Mahershala Ali (o ator que venceu um Óscar por "Moonlight") na pele de Shirley e Viggo Mortensen na do rude Tony. Um negro no banco de trás conduzido por um branco era então espanto nunca visto no Deep South. Eles são dois homens em tudo opostos que, sem nunca esquecerem as diferenças que os separam, vão aprender a conhecer-se na viagem. São ainda dois modelos de personagens que os atores respetivos não haviam ainda experimentado e o mesmo pode dizer Peter Farrelly, que com esta comédia dramática baseada num caso verídico, acaba por pôr um travão às comédias destravadas que há 25 anos tem vindo a assinar com o irmão Bobby.
Farrelly recebeu-nos na Suíça com uma chávena de mate, bebida que já sabíamos que Viggo Mortensen também aprecia, pelo menos desde que este foi rodar "Jauja" (2014), de Lisandro Alonso, na Argentina. "É verdade, ele também bebe, mas ele trouxe o dele e eu o meu. Um amigo entrou-me no escritório há uns 15 anos com mate e deu-mo a provar, foi o dia mais feliz da minha vida, dá-nos uma carga muito positiva, não passo sem isto..." E a carga positiva do filme, que é inegável, de onde vem? "Foi sorte pura", começou Farrelly. "Há cerca de três anos, o ator Bryan Currie, que entrou em alguns filmes meus, contou-me que ia escrever um guião baseado no pai de um amigo dele — e esse amigo era Nick Vallelonga, filho de Tony. Deu-me a saber o esqueleto da história, isto é: 1962, pianista negro em tournée, segurança branco que, apesar de racista, dava mais importância ao livro de cheques do que ao preconceito. Nem precisei de ouvir mais: a história tinha tudo para funcionar". Farrelly não mais a esqueceu e dois meses depois, perguntou a Currie, que ainda nem tinha pegado na caneta, em que ponto estavam as coisas. "Posso escrever o guião contigo? Começamos segunda-feira”. A estes acabou por juntar-se Nick, que 25 anos antes havia filmado o pai a relatar os acontecimentos (Nick aparece também no filme como ator num pequeno papel). "Na verdade, encurtámos o tempo da ação para dois meses até ao Natal de 1962, mas a tournée de Shirley foi bem mais longa, durou quase um ano. Até houve uma altura em que ele despediu Tony, depois voltou a contratá-lo. Mas praticamente tudo o resto que vemos no filme aconteceu: as cenas de pancadaria, o murro no polícia, as cartas, mais de cem, que Shirley escreveu em nome de Tony e que este ia enviando à mulher. Foi ao ver o vídeo dos depoimentos de Tony que nos demos conta da existência do 'Green Book'. Eu nunca tinha ouvido falar de tal coisa."
Dito isto, conclui-se que Farrelly, que é um homem de comédia, acabou por chegar por acaso ao drama sem o planear ou, como ele diz, foi o drama que lhe caiu no colo. "Eu não planeei nada disto. Fiz ao longo da vida filmes melhores do que outros, sem que me arrependa de nenhum. Acho honestamente que o Bill Murray em 'O Rei do Bowling' criou um dos melhores papéis secundários destas últimas décadas. E que em 'Doidos por Mary' há mesmo um grande argumento que merecia ter tido outro reconhecimento. Agora dei por mim a fazer um filme como 'Green Book' , desta vez sozinho, após uma carreira assinada sempre a meias com o meu irmão, e senti muito a falta dele, mas ele tinha a cabeça noutro sítio [Bobby afastou-se parcialmente do cinema quando perdeu um filho em 2012, por overdose]. Dei por mim a dirigir um ator muçulmano, Mahershala Ali, que reza cinco vezes por dia. E uma estrela, Viggo Mortensen, que não conhecia pessoalmente e que pouco ou nada tem que ver com as comédias que fiz até agora. Nunca precisei de prémios e de nomeacões da Academia [algo que Farrelly, de facto, nunca teve]. Mas sei que estou a receber muita atenção agora.”
E está: Peter saiu de Toronto no ano passado com o Grosch. Premio do Público que costuma condizer com os gostos da Academia de Hollywood, "Green Book" venceu entretanto três Globos de Ouro e está nomeado para cinco Óscares, incluindo os de Melhor Filme e os de interpretação masculina. "Parece gue me estão a levar a sério! Mas não é coisa que me tire o sono. Isto de fazer filmes é bastante complicado. É preciso lutar com pessoas. Ainda há seis semanas, alguém da produção' tentou mudar o nome do filme, achou que 'Green Book' nada queria dizer, propôs 'Rules of the Road', gue era péssimo... E eu perguntei: Mas não há um reality show com um titulo parecido?!' Enfim, estou mais preocupado com outras coisas." Farelly gostava que este filme conseguisse mudar um bocadinho cabeça das pessoas quando for mostrado, "sei lá eu, numa pequena cidade conservadora do Texas. Sabe porquê? Porque acho que um racista pode mudar. Pode mesmo, se passar tempo, se aprender a conviver com quem lhe é estranho, como o Shirley e o Tony no filme. George Wallace, governador de Alabama e um dos líderes do racismo na América dos anos 60, também mudou e reconheceu no fim da sua vida que estava errado. E, por favor, não me digam que o cinema não é capaz de fazer essa diferença, e de mudar a perceção das coisas. Eu fiquei devastado depois de ter visto 'A Lista de Schindler' , não sabia que a guerra, filmada de tão perto, podia ser assim. E por falar em Spielberg: ainda hoje não consigo mergulhar no oceano sem antes olhar minha volta e ver se não anda algum tubarão por ali..."
Viggo Mortensen, ainda a tentar o peso que ganhou para o papel (porque Tony é um alarve a comer), sentou-se à mesa em seguida na mesma roda de imprensa e acabou por complementar as intenções de Farrelly: “Este filme é divertido e ao mesmo tempo é profundo, consegue tocar em coisas muito sérias sem ter que expor o seu programa político. E este equillbrio é natural, espontâneo, tal como o Tony, um tipo que consegue estar a comer e a fumar ao mesmo tempo." Mortensen frisou que quis o papel por causa do argumento, um dos melhores que lhe passaram pelas mãos nos últimos anos. "Não tinha, contudo, a certeza de ser a pessoa ideal para o fazer. Não queria sublinhar o cliché do ítalo-americano trafulha que começa a formar-se no cinema a partir de 'O Padrinho' — e sabia que a ação de 'Green Book' era anterior à data daquele filme de Coppola. Nem cair em qualquer coisa que ficasse a parecer uma imitação de 'Os Sopranos'. Mas depois lembrei-me que também hesitei quando estava a interpretar Freud em 'Um Método Perigoso' e de como Cronenberg me convenceu de que eu era capaz. Por outro lado, a ajuda do Nick foi preciosa', apurei com ele o calão de época que Tony Vallelonga tanto usava." Para o ator norte-americano descendente de dinamarqueses, "Green Book" não é um filme ideológico, "conta-nos antes a história de um tempo em que o racismo estava institucionalizado na América. A um ponto tal que as pessoas nem se davam conta dessa iolência. Depois, há dois tipos que vão fazer-se à estrada. E nunca mais serão os mesmos no termo dessa viagem".
Francisco Ferreira, Expresso