Clandestina
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Categoria hospedeira: Programação
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in Ciclo do mês
DIA 4 | IPDJ | 21H30
CLANDESTINA
Maria Mire, PT, 2023, 82’, M/12
sinopse, ficha, técnica e trailer: aqui
NOTA DE INTENÇÕES DA REALIZADORA
O livro “Memórias de uma falsificadora - A Luta na Clandestinidade pela Liberdade em Portugal” de Margarida Tengarrinha constitui um documento apaixonante, que nos permite submergir na rede clandestina do Partido Comunista Português. E assim conhecer melhor esta importante estrutura de resistência ao regime fascista do Estado Novo em Portugal, a partir da experiência narrada de uma jovem artista que mergulha nesta rede de modo decidido e apaixonado.
Esta narrativa feminina ganha traços heróicos à medida que a personagem vai superando as inúmeras dificuldades da vida espartana, dúplice e instável da clandestinidade, assim como enfrentando diversos acontecimentos trágicos. Mas aquilo que é verdadeiramente apaixonante é o facto do dilema surgir como alavanca constante para uma nova situação. Para além de retratar a protagonista como uma mulher emancipada num contexto politicamente opressivo à igualdade de género, não omite os conflitos internos derivados da separação da família, do isolamento, do afastamento da filha, do espectro da prisão, da morte do companheiro.
Interessaram-me muito estes processos de invisibilidade, que neste contexto em particular sugerem ter uma dupla camada, a primeira pela invisibilidade das narrativas femininas ligadas à luta política e a segunda pela própria natureza da experiência da clandestinidade, a qual implicava operar a partir da sombra. Este testemunho de Margarida Tengarrinha é, dessa forma, um raio de luz que atravessa esse espesso manto e que junta a voz de uma jovem artista, que se tornou falsificadora de documentos por militância política, à memória coletiva dos que lutaram pela liberdade, muitos deles de forma anónima, mas não menos decisiva no derrube do regime.
O interesse na realização deste filme prende-se assim tanto com a urgência de tirar da sombra a ação das mulheres que de modo revolucionário combateram neste período negro da história contemporânea portuguesa, assim como o de pensar na dimensão política presente nos pequenos gestos da vida quotidiana.
A construção imagética do filme, numa direção anacrónica à narrativa, pretende expandir temporalmente esta experiência pessoal. A narradora que relata a história na primeira pessoa transforma-se assim numa personagem omnisciente que antecipa situações futuras, como se estes episódios ecoassem num tempo ainda porvir.
O filme procura materializar visualmente estas memórias a partir de uma abordagem iminentemente subjetiva, as quais se desenrolam num tempo mais próximo da contemporaneidade e se cruzam com um espaço onírico, numa geometria capaz de misturar as coordenadas físicas com a dimensão emocional e traumática da experiência narrada.
Através do intencional anacronismo entre o tempo da narrativa e o tempo das imagens, a dimensão imagética e sonora de CLANDESTINA foi construída sobre a ideia de uma história narrada para um outro tempo, já latente.
E assim, mais do que se endereçar ao passado, este filme procura abrir-se a uma dimensão transhistórica, transportando esta narrativa para o presente e refletindo sobre a atualidade e operatividade do próprio conceito de fascismo e sobre as novas formas de clandestinidade.