Great Yarmouth - Provisional Figures
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Categoria hospedeira: Programação
67º ANIVERSÁRIO DO CINECLUBE DE FARO
DIA 6 | IPDJ | 21H30
GREAT YARMOUTH - PROVISIONAL FIGURES
Marco Martins, PT/FR/UK, 2022, 113’, M/14
ENTRADA LIVRE
sinopse ficha técnica e trailer: aqui
NOTA DE INTENÇÕES
Figuras Provisórias (em inglês “Provisional Figures”) é a denominação dada em estudos estatatísticos a todos os emigrantes com uma situação indefinida ou provisória presentemente a trabalhar no Reino Unido.
Great Yarmouth – “O melhor lugar do universo” – escreveu Charles Dickens em 1849, quando para lá levou um dos heróis operários mais queridos da Inglaterra vitoriana, David Copperfield, sem imaginar que 160 anos depois a indústria alimentar e a atração dos ocidentais à carne processada e aos perus para rechear no Natal, dariam abundante lugar de emprego aos trabalhadores portugueses fugidos da recessão económica.*
No quarto do Royal Hotel, no mesmo exacto quarto onde Dickens se tinha hospedado para escrever Copperfield, tenho vista para a Golden Mile (a marginal de Great Yarmouth) que não há muito tempo era um lugar de eleição para as férias da classe trabalhadora inglesa. Preparo a rodagem do filme com vista para esta vila fantasma, quase deserta, vítima das profundas alterações na sociedade inglesa, do mercado de trabalho e da proliferação dos voos low-cost, que levou os turistas ingleses para as praias do Algarve, para o sul de Espanha ou para distantes destinos exóticos.
Um lugar bizarro, enigmático, uma espécie de fim do mundo, uma testemunha silenciosa de um tempo áureo do turismo balnear onde os hotéis e pensões que outrora serviam numerosas famílias inglesas acolhem agora milhares de emigrantes desesperados prontos para aceitar Zero Hour Contracts, horários desregulados e condições de trabalho deploráveis. Uma massa anónima de trabalhadores flutuantes, contratados sazonalmente, para trabalhar nas fábricas situadas por vezes a mais de 100 km da Golden Mile.
Great Yarmouth é um lugar doente, distorcido como uma má trip de ácidos. Uma espécie de Las Vegas decadente, vazia e sem fulgor, onde se sucedem néons de casinos, bares de strip e superfícies atulhadas de máquinas de jogos com nomes flamejantes – Caesar Palace, Silver Flipper, Gold Rush. Um longo e imenso travelling deslumbrante que esconde a pobreza mórbida instalada naquela vila do Norfolk inglês.
No quarto do hotel preparo a rodagem deste filme, resultado de mais de cinco anos de trabalho junto da comunidade portuguesa que para aqui veio trabalhar nos primeiros anos da crise económica, quando o nosso primeiroministro disse não haver mais espaço para todos, convidando-nos a procurar trabalho (porque já ninguém fala de emprego) noutras paragens.
Uma rodagem violenta, interrompida durante seis meses pela primeira vaga da pandemia, em que as circunstâncias das personagens se confundem com as condições em que o filme foi fabricado (isolamento total, medo constante, incerteza no futuro, ausência de contacto com o mundo exterior, enclausuramento no espaço dos quartos de hotel, proibição de contacto social, etc.). Nós somos também aqueles que trabalham no escuro e em silêncio, vítimas de uma espécie de paranoia colectiva que se vai impondo nas imagens e na narrativa.
Naquele quarto tento reconstruir a vida daqueles homens e mulheres que durante a noite vagueiam como zombies entre as fábricas, os hotéis e as arcades da marginal. Tento das expressões, dos relatos de uma espécie de Working Class Heros bem diferente daquela sobre a qual Dickens escrevia.
Por vezes fujo do quarto e vou clandestinamente até à paragem onde os trabalhadores chegam e partem da fábrica (a mesma que vemos no filme) – ninguém fala, ninguém olha para mim. Eu sou invisível, eles são números (figuras) provisórios sem estatuto definido, com medo de serem expulsos do Reino Unido. Nem o Brexit, nem a pandemia os fazem parar. Temos todos medo.
Há muito tempo que aqui estou, talvez há mais de cinco anos, comecei a entrevistar estes emigrantes nos cafés de King Street (a que os portugueses chamam Rua Augusta) com o objectivo de fazer uma peça de teatro que viria a estrear em 2018 no Norfolk & Norwich Theatre Festival, inteiramente representada por não-actores (trabalhadores das fábricas e cidadãos de Great Yarmouth). Entrevistas difíceis, feitas de meias palavras, de receios e desconfianças numa altura em que a sombra do Brexit já pairava no ar. Na esteira do meu trabalho com comunidades marginais e sem voz, tinha sido convidado pelo Arts Council e a associação Sea Change para viajar até GY e dar a conhecer através do meu trabalho esta realidade, esta geografia, relativamente desconhecida do grande público.
A emigração portuguesa para esta vila turística iniciou-se aproximadamente em 2009, tendo como destino as grandes fábricas de transformação alimentar que se instalaram nesta zona tradicionalmente fustigada pelo desemprego aproveitando os hotéis vazios da Great Yarmouth para instalar os seus trabalhadores. Hoje, apesar do Brexit, estimase em mais de 10 mil o número de portugueses que aqui vive e cria raízes modificando a face de uma vila onde, em algumas ruas secundárias, o comércio (cafés, cabeleireiros e mercearias) já é exclusivamente português.
Rodeada por vastas reservas naturais, as áridas e belas marshes do Norfolk inglês, GY é uma vila onde tudo correu mal: uma bolsa de pobreza endémica – white trash – numa região genericamente rica. Great Yarmouth é um fracasso estatístico em termos de desemprego, abandono escolar, gravidez adolescente, alcoolismo e abuso de heroína, que no referendo do Brexit se revelou a quinta localidade mais eurocéptica de toda a Inglaterra, com 71,5% de votos leave.
Este filme nasceu assim do encontro entre uma peça de teatro, que partia quase exclusivamente dos testemunhos individuais dos trabalhadores das fábricas e dos habitantes nativos de Great Yarmouth (eles próprios actores no espectáculo e muitos deles participantes do filme) e um argumento de ficção escrito a partir daquilo que não podia ser mostrado em palco ou a que eu nunca teria acesso. Camadas de realidade/ficção que se juntam num lugar de encontro entre a minha imaginação e os relatos em primeira mão daqueles que vivem diariamente a violência deste lugar.
A história de Tânia forma com São Jorge uma espécie de díptico sobre os escombros da recessão económica da última década e as profundas alterações no mercado de trabalho por ela provocadas. Inspirada numa real traficante de mão de obra barata que operava junto das agências de recrutamento portuguesas facilitando a integração dos emigrantes junto das fábricas e hotéis da região do Norfolk, Tânia é a minha primeira protagonista feminina e encerra dentro dela todo o excesso, a violência, as contradições e os sonhos daqueles que um dia emigraram para aquela vila na esperança de não mais voltar a Portugal.
Uma personagem escrita desde o início para a Beatriz Batarda e um grupo de actores e nãoactores que me tem acompanhado, no palco e no cinema, ao longo destes últimos anos. A eles, a toda equipa e principalmente aos emigrantes portugueses que sempre colaboraram com este projecto (mesmo nos momentos mais conturbados da pandemia) os meus sinceros agradecimentos.
O Realizador
Marco Martins
* Excerto do artigo “Quando as Luzes se Apagarem, Brilharão os Corpos que Pagaram a Crise”, de Inês Nadais, escrito para o Público a propósito do espectáculo Provisional Figures de Marco Martins.
notas críticas
Emigrantes portugueses em Great Yarmouth, uma realidade social revelada pelo olhar incisivo de Marco Martins. Com Beatriz Batarda, atriz sublime. Jorge Leitão Ramos, Expresso
Audaz e memorável. Screendaily
Duro e fascinante. Deadline
Uma obra poderosa. Jornal de letras
outras leituras
Elogio do realismo. João Lopes, dn
"Eu escolhi rebentar o meu corpo." Beatriz Batarda sobre "Great Yarmouth: Provisional Figures". TSF
Great Yarmouth – Provisional Figures: a matança e desespero no outro lado do resort. Paulo Portugal, Insider