A História de Souleymane
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Categoria hospedeira: Programação
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in Ciclo do mês
DIA 27 MAR | IPDJ | 21H30
A HISTÓRIA DE SOULEYMANE
Boris Lojkine, França, 2024, 93’, M/12
sinopse, ficha técnica e trailer: aqui
notas críticas
Um grande filme interpretado por um imenso actor não profissional (como 99% do elenco, com excepção de Nina Meurisse, já protagonista de Camille), Abou Sangaré, que, na vida real, também luta por uma regularização que lhe foi negada… poucos dias após ter recebido o Prémio de Melhor Interpretação na secção Un Certain Regard do Festival de Cannes. Quando a realidade e a ficção se encontram. Première (Thierry Chèze) ★★★★
Será o filme a crónica de um desaparecimento? Pelo contrário, Souleymane tropeça, mas mantém-se de pé, e a sua recusa final em mentir assemelha-se a uma explosão de dignidade que é, no mínimo, profundamente comovente. L’Obs (Guillaume Loison) ★★★★
A História de Souleymane é tão tenso como um thriller. Positif (Louise Dumas) ★★★★
O momento no filme em que [Abou] Sangaré se constrói como actor, é o momento também da revelação da sua intimidade e do seu passado biográfico. A história de Souleymane, em suma, é a vida de Sangaré.
Como dar conta dos nossos contemporâneos agora que o realismo e o humanismo se ausentaram das televisões e da política? O cinema que interessa interessa-se. É essa A HISTÓRIA DE SOULEYMANE. Quem é ele? Vemo-lo todos os dias, não sabemos delePúblico (Vasco Câmara)
Lojkine filma o seu anti-herói com uma câmara tão precisa quanto ágil, num estilo “quase” documental» e que o realizador é «um observador apaixonado das singularidades de cada ser humano e, nessa medida, do seu lugar na história colectiva.» Diário de Notícias (João Lopes)
[O filme] oferece, em primeiro lugar, um poderoso retrato humano. Jornal de Notícias (João Antunes)
Uma câmara de proximidade que nos permite vestir a pele do outro e nos confronta com as nuances do nosso próprio mundo.
O filme é um murro no estômago no estilo de vida da burguesia ocidentalVisão (Manuel Halpern)
Mesmo que este não seja um cinema de resposta, será, talvez, um convite a olhar para as pessoas reais. Neste sentido, já um dos filmes do ano. Esquerda.net (Paulo Portugal)
Pela primeira vez, um filme europeu decide dar protagonismo e ponto de vista a esta nova vaga de escravos do “capitalismo digital”. Expresso (Francisco Ferreira)
Sobre o filme, por Boris Lojkine
A ORIGEM
Para mim, fazer filmes sempre foi uma maneira de desafiar as expectativas sobre quem devo ser e que tipo de histórias devo contar, assim como uma forma de me colocar no lugar das outras pessoas. Já há vários anos que desejo fazer um filme sobre os estafetas de bicicleta que atravessam a cidade com os seus sacos turquesas ou amarelos, marcados com a app para a qual trabalham, tão visíveis mas completamente clandestinos – a maioria sem qualquer documentação.
Hope (2014), o meu primeiro filme de ficção, conta a história de Léonard e Hope, um homem camaronês e uma mulher nigeriana que se conhecem a caminho da Europa. Nos debates que se seguiram à estreia do filme, muitas pessoas me perguntaram se eu queria escrever a sequela e mostrar o que lhes acontece quando chegam a França. Eu resisti muito a esta ideia, porque viajar sempre foi parte do meu desejo de fazer filmes. Eu filmei todos os meus filmes em países longínquos como Marrocos, Vietname e a República Centro-Africana.
Mas continuei a pensar sobre estes mensageiros ciclistas, e então questionei-me: e se filmasse Paris como uma cidade estrangeira cujos códigos não conhecemos, onde cada polícia é uma ameaça, onde os habitantes são hostis, desdenhosos, distantes? Desde os projectos de habitação suburbanos aos edicios de estilo Haussman no centro, de restaurantes McDonald’s aos edifícios de escritório, de abrigos a carruagens de comboios suburbanos, eu filmei a minhaprópria cidade, por vezes a pequenas distâncias da minha casa, mas de um ângulo radicalmente diferente. No filme, o “outro” somos nós: o trabalhador que pede um hambúrguer, o transeunte que foi abalroado e reclama com os estafetas de comida, a funcionária pública à frente de Souleymane.
ARGUMENTO
Eu queria basear a escrita do argumento numa forte base documental. Com a Aline Dalbis, uma antiga documentarista e agora directora de casting, conhecemos muitos trabalhadores na entrega de comida. Eles contaram-nos sobre os bastidores do seu trabalho: os problemas com os seus gestores de conta, as burlas de que foram vítimas, as suas interacções com clientes; eles contaram-nos sobre as suas dificuldades em encontrar alojamento, as suas relações com outros estafetas, colegas que não são necessariamente seus amigos. Em todas as suas histórias, o problema da documentação ocupou um lugar especial. Foi o caso, nomeadamente, com os guineenses com os quais falámos. Quase todos eram ou tinham sido requerentes de asilo, e eram obcecados com o processo de candidatura, porque a concessão do asilo poderia mudar as suas vidas. O pior que pode acontecer enquanto estafeta já não é ter a bicicleta roubada como no Ladrões de Bicicletas (1948) (se a bicicleta for roubada, compra-se uma nova em Barbès – um bairro em Paris – no dia seguinte). O pior que pode acontecer é não passar na entrevista de pedido de asilo.
O filme conta a história dos dois dias que antecederam a entrevista de Souleymane. Eu queria que o filme tivesse um ritmo acelerado. Para conseguir isto, decidi cedo que iria manter a história curta. Por isso, com Delphine Agut, a co-argumentista do filme, construímos uma dramaturgia mais próxima do thriller do que da crónica social. Durante o processo de escrita, pensei muito em dois filmes romenos que me marcaram particularmente: 4 Meses, 3 Semanas
2 Dias, de Cristian Mungiu, e A Morte do Sr. Lazarescu, de Cristi Puiu. Ambos mostram com grande detalhe, minuto após minuto, os esforços de uma personagem a lutar como uma mosca num frasco, presa de um sistema opressor. Como Souleymane. Durante estes dois dias nos quais deveria estar a descansar antes da sua entrevista, o nosso protagonista não tem um minuto para respirar. Ele anda às voltas, a tentar resolver problemas que se estão a acumular, a mãos com o sistema implacável de uma sociedade europeia que achamos ser gentil, mas que é terrível para aqueles que não são cidadãos.
Escolhi contar a história de um homem que decidiu mentir. De um ponto de vista ficcional, o mentiroso é frequentemente mais interessante do que aquele que escolheu dizer a verdade. É também uma escolha política. Eu não queria escrever um conto exemplar e mostrar uma boa pessoa que enfrenta dificuldades quando confrontada com uma má política de imigração. É demasiado fácil e não encoraja à reflexão. Eu prefiro fazer perguntas: o Souleymane merece ficar em França? Deve-lhe ser concedido asilo? O espectador considera que ele tem direito ao asilo? Ele merece-o? O que é que o espectador quer?
CASTING
Quase todos os actores no filme são não-profissionais sem qualquer experiência. Com a Aline Dalbis, fizemos uma longa casting call, passeando pelas ruas de Paris para conhecer estafetas. Nós mergulhámos na comunidade guineense, e foi finalmente em Amiens, através de uma associação, que conhecemos o Abou Sangare, de 23 anos, que chegara a França sete anos antes, quando ainda era menor. O seu rosto, as suas palavras, a intensidade da sua presença à frente da câmara impressionaram-nos imediatamente. Era ele.
Ao longo de um período de vários meses, tivemos muitos ensaios com o Sangare (guineenses têm o hábito de se tratar pelos apelidos em vez dos primeiros nomes), e depois com os outros actores. O Sangare tinha um grande peso nos seus ombros. Ele está em todas as cenas, em quase todos os planos. Na vida real, ele é mecânico, não um estafeta. Durante várias semanas, ele fez trabalho de entregas para se familiarizar com os gestos diários, a mota, o telemóvel, a app, o saco, a forma de se introduzir aos clientes e ao staff do restaurante. Aos poucos, ele foi encarnando a personagem. Este tempo de ensaio permitiu que o elenco se preparasse. Também me permitiu reescrever o guião, adaptando-o às suas maneiras específicas de falar e aos seus detalhes. É isto que gosto no trabalho com não-actores: eles aparecem como são, carregando consigo o seu próprio mundo. Cabe-me a mim receber a sua singularidade.
Durante os quarenta dias de rodagem, Sangare impressionou-nos a todos. Por vezes de uma beleza deslumbrante, com um rosto mutável e muito expressivo, exibindo todo um conjunto de emoções, ele era sempre convincente, e, muitas vezes, profundamente comovente.