Viridiana
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Em 1960, Luis Buñuel decidiu voltar a Espanha, vinte e um anos depois do fim da guerra civil. Naturalizado mexicano (em 1949), não esperava que o governo franquista pusesse entraves a um regresso que era provisório, pois que nunca pensou voltar a fixar-se no seu país natal. Pelo sim, pelo não, a irmã esperou-o na fronteira de Port-Bau, para dar o alarme em caso de qualquer incidente. Nada se passou.
Nas memórias, Buñuel fala longamente da sua emoção ao rever os sítios da infância e juventude. “Cheguei a chorar, quando passeei por esta ou aquela rua”. E, em Espanha, conheceu o produtor Gustavo Alatriste, personagem assaz singular que lhe propôs um filme, a rodar em Espanha, com inteira liberdade.
Buñuel hesitou. Sabia que o script seria sujeito a censura prévia e temia reacções muito negativas dos seus amigos espanhóis exilados, que pensariam em “traição” quando soubessem que Buñuel voltara a filmar em Espanha. Apesar de tudo, aceitou, e escreveu a história de Viridiana, “assim chamada em honra de uma santa pouco conhecida, de que os jesuítas me tinham falado em miúdo, no colégio de Saragoça”.
A censura aprovou o argumento, objectando apenas ao primeiro final pensado. O filme devia terminar com Viridiana a bater à porta do quarto do primo. A porta abria-se, ela entrava, a porta fechava-se. A sugestão foi achada inaceitável. “Por isso” – escreveu Buñuel – “imaginei outro final, muito mais pernicioso do que o primeiro, porque sugeria, sem sombra de dúvida, um ‘ménage à trois’”. Viridiana reunindo-se ao primo e a outra mulher, amante dele, num jogo de cartas. O primo diz-lhe: “Já sabia que acabavas por vir jogar ao ‘tutte’ connosco”. A censura nada percebeu e não objectou. A rodagem decorreu com “total liberdade”, no Verão e no Outono de 1960.
Concluído o filme, nos princípios de 1961, Viridiana foi imediatamente seleccionado para Cannes, representando a Espanha. Mas, quando da estreia (17 de Maio de 1961) foi o bom e o bonito. O escândalo só foi comparável ao provocado por L’Âge d’Or em 1930. O “Osservatore Romano” publicou imediatamente um artigo violentíssimo, acusando a obra de blasfémia e sacrilégio. Entre entusiásticos defensores e enraivecidos detractores, Cannes foi palco de uma batalha campal, que atingiu o apogeu quando o Júri concedeu ao filme a Palma de Ouro. O director-geral do Instituto de Cinema espanhol foi ao palco recebê-la. Foi imediatamente demitido, enquanto a imprensa espanhola era proibida de mencionar o filme e toda a gente se perguntava como é que “aquilo” fora possível. Diz-se que o próprio Franco quis julgar com os seus olhos. Buñuel, irónico, comentou que “já devia ter visto muito pior”.
Durante cerca de um ano, o governo espanhol tentou tudo para que o filme não circulasse em país nenhum. Não ganhou a batalha. Na Primavera de 1962, Viridiana estreou, com enorme sucesso, em quase todas as capitais europeias, apesar de ameaças de excomunhão a católicos que o fossem ver. Apenas em Itália o filme foi retirado de cartaz e objecto de um processo que terminou com a condenação de Buñuel a um ano de cadeia. Claro que em Madrid e Lisboa nem falar do filme, quanto mais vê-lo. A Portugal só chegou em 1976, dois anos depois de Abril. Tudo mudara tanto que não houve protestos de ninguém, nem sequer quando o então Presidente da República (General Ramalho Eanes) o foi ver ao Apolo 70.
O argumento de Viridiana é de Buñuel e de Alejandro que já haviam assinado juntos a adaptação do Nazarin de Galdós. E se o espectador encontra nesta celebérrima obra quase todos os temas de filmes anteriores de Buñuel (notoriamente o das virgens perversas, ou das divas não castas), Nazarin é o filme que mais se lhe assemelha. Em ambos se trata centralmente da imagem em negativo da caridade cristã, em ambos, como o próprio Buñuel diz, o tema é o do D. Quixote. Viridiana é um Nazarin de saias, ou como Buñuel prefere dizer, um D. Quixote de saias.
Só que as saias são bastante importantes e não menos centrais. Nazarin não escandalizou ninguém (ou poucos), como o D. Quixote também não. Que seja uma mulher a passar por semelhantes aventuras, tudo muda, porque o sexo em Buñuel não é uma pequena diferença. A verificação deste facto está no modo como o guião passou à censura espanhola (é possível contar a história sem arrepiar ninguém) e como o filme provocou tal banzé. As imagens é que contam (e os sons) e umas e outros são dos mais fortes de Buñuel.
Fortes ou grandiloquentes? Se é lícito formular reservas a uma obra-prima (e Viridiana é-o) eu diria que o lado mais frágil do filme me parece estar exactamente nos seus aspectos escorregadios de “grande e horrível crime” precisamente nas suas sequências mais famosas: a ceia dos mendigos, o Aleluia de Haendel, a coroa de espinhos queimada, o festival fetichista demasiado escancarado. Pessoalmente, prefiro, em Buñuel, outros meios-tons (os de Ensayo de un Crimen, El, Susana, Tristana), outro delírio (o de L’Âge d’Or, Abismos de Pasión, El Ángel Exterminador) ou outra obscuridade (a de Subida al Cielo, Belle de Jour, Simon del Desierto, La Voie Lactée, Cet Obscur Objet du Désir). E gosto de saber que os atributos citados (meios-tons, delírio, obscuridade) podem ser ilustrados por esses títulos com o mesmo grau de arbitrariedade e de certeza.
Mas já não tenho muito espaço para deambulações. Regresso ao fundamental: “um sonho de loucura e finalmente o regresso à razão”, para usar termos de Buñuel, a propósito de Viridiana e válidos para a quase totalidade da sua obra. O tema dos Nazarins e Quixotes.
O sonho: A partir de Viridiana, a estrutura onírica é cada vez mais vincada. Se se quisesse ser excessivo podia-se dizer que toda a acção do filme não passa dum sonho (dum desejo) a partir do momento em que, no convento, a madre superior chama a irmã Viridiana e lhe ordena que vá ver o tio. A câmara aproxima-se do rosto da noviça e capta um grande plano bastante enigmático e de grande duração. O género de planos que na linguagem convencional do cinema costuma iniciar um flashback ou um sonho. Tudo pode ter começado a acabado aí.
Mas, mesmo fora de uma interpretação tão extremista (embora seja fascinante pensar que se assim fosse o recuo do travelling final podia só acabar no convento), a sequência seguinte a esta é um convite ao logro e qualquer espectador morde a isca. Após o tal longo plano, há um fondu com os pés e as pernas de uma miúda (habitual obsessão de Buñuel) que depois perceberemos que está a saltar à corda e a ser vista pelo olhar perverso de D. Jaime (e também são os pés dele, o que vemos primeiro). Manifestada já a pouca simpatia da sobrinha pelo tio, julgamos que essa situação corresponde a um flashback que nos vai elucidar sobre as raízes passadas dessa animosidade. Mas, na sequência seguinte, vemos Viridiana, já sem hábito, a chegar à quinta e ao tio, e vemos ervas que em vinte anos cresceram por toda a parte. A miúda a saltar à corda não era Viridiana, mas Rita, a filha de Ramona. Não houve afinal, qualquer flashback mas progressão rápida da narrativa, com transições abruptas.
Só que flashback e progressão se confundem, como em todo o filme. Muito de Viridiana há em Rita, essa criança singularmente perversa e voyeuse que é tanto a imagem dum possível passado de Viridiana (há vinte anos) como a do futuro, quando por fim, se abandona às brincadeiras proibidas. Não é Rita quem continua a saltar à corda debaixo da árvore onde se enforcou D. Jaime e a quem a mãe diz “se acontecer alguma desgraça é por tua culpa”? E com ou sem culpa dela (ou numa culpa partilhada na tripla imagem feminina Viridiana-Romana-Rita) a “desgraça” já tinha acontecido e voltou a acontecer.
Por outro lado (estou ainda na conversa da mescla entre flashbacks e progressões), Viridiana é imediatamente associada a um passado e a uma morte (a tia). De certo modo, é o regresso desta do túmulo, depois da morte por crise cardíaca, na noite de núpcias, vestida de noiva. E Viridiana , a sonâmbula, aceita recriar essa imagem, na noite de posse ou de desejo em que o “noivado do sepulcro” se repetiu. E ficamos sempre na dúvida sobre qual das versões de D. Jaime era verdadeira.
Sonâmbula, dissemos. Aquela “bela adormecida” tem estranhas noites, mesmo antes da noite nupcial. Não me refiro apenas ao arsenal erótico-religioso que transporta na mala e que desembrulha quando julga estar só (cruz, coroa de espinhos, cilícios) na zona equívoca entre o êxtase místico e o prazer solitário. Penso na fabulosa sequência do sonambulismo propriamente dito. Aí, é ela quem entra no quarto do tio (surpreendendo-o em prazeres análogos), de caixa de costura na mão, pernas nuas e camisa de noite. Se a explicação do sonambulismo pode ir até aí, já não chega para o que se passa a seguir: os objectos de costura deitados ao lume, a cinza apanhada para a caixa e depois despejada em cima da cama do tio.
Mais uma vez essa sequência abre para trás e para a frente (ou cerra-se se se preferir). Essa deambulação é consequente ao mugir da vaca (os dois grandes planos e as frases do caseiro são duma ousadia suprema), à conversa sobre o filho ilegítimo e ao insecto apanhado na água. As imagens do dia volvem-se nas da noite e são estas que dão a D. Jaime a inspiração para o seu plano sedativo (com a cumplicidade de Ramona).
Essa noite nupcial volve-se outra vez em morte (suicídio de D. Jaime na corda fálica) e Viridiana (que teve muito pouca pressa em partir, último viajante a entrar no autocarro) regressa para expiar a sua culpa, como diz a superiora, agora de óculos em visão de pesadelo (sempre a estrutura onírica). Eliminado este velho, desmultiplica-se no fabuloso arsenal de mendigos (Santa Viridiana) e na imagem contrapolar do macho, o primo Jorge, o do pecado.
Viridiana que pretendia fugir aos demónios acabou por vir, como na parábola evangélica, com “setenta vezes sete” os que tinha expulsado. É ela quem leva para casa primo e mendigos, desdobrando as imagens de animalidade do homem. Outra ausência e é a orgia. E “aquela senhora melhor que o pão” vai conhecer outra noite inesquecível, entre um coxo e um leproso que esperam a sua vez. Só depois acorda, quando parece adormecida e novamente sonâmbula entra no quarto do primo para o ménage à trois. Cá fora, Rita queima a coroa de espinhos. E a câmara recua através do salão (onde numa das paredes, o retrato da tia é o de Viridiana) até deixar os três perdidos na profundidade daquele campo.
Não falei do mais célebre: o Angelus (montagem demasiado elaborada, para meu gosto), a galeria de monstros, o episódio do cão e da carroça, a última ceia, tudo o que delicia os que vêem em Buñuel a progressão (ou o flashback?) do imaginário espanhol, Goya revisitado. Mas esse “muito barulho” é acidental, embora Buñuel o leve a extremos de irrisão dificilmente igualáveis. O essencial é o sonho. Ou, finalmente, o regresso à razão. A luz nos olhos de Viridiana no final, como a luz nos olhos de Ramona no sótão. “A minha heroína” - Buñuel o disse - “é mais virgem no fim do que no princípio”. E não estava a brincar connosco. Porque também disse, como Flaubert da Bovary, “Viridiana sou eu”. João Bénard da Costa
In Escritos sobre Cinema de João Bénard da Costa. Tomo I, I.º volume. Cinemateca Portuguesa, LX: 2018
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