Vacas + O Bom, O Mau e o Vilão

Festa do Cinema ao Ar Livre 2020

 2ªF – DIA 10 AGO | 21h45
CLAUSTROS MUSEU MUNICIPAL DE FARO

lotação: 60 lugares

VACAS, Isabel Aboim Inglez, 2010, 9' 
O BOM, O MAU E O VILÃO / Il Buono, il Brutto, ilI Cattivo, Sergio Leone, IT/ES/DE, 1966, 161’, M/12

sinopses, ficha técnicas: aqui 

crítica

Era uma vez, em Itália, a infância à beira da II Guerra, com filmes de Hollywood e "comics" de Flash Gordon e Mandrake - e com música de Bing Crosby, jazz e livros.
Depois, a guerra. Sergio Leone tinha 11 anos quando co­meçou o conflito. Era Roma sem comida, com mercado negro, propaganda do Duce (e ocupação nazi entre 1943 e 1944). E cinema americano proibido. A América era, então, o "ou­tro mundo", fantasia de abundância com que se sonhava às escondidas. E um acto de rebeldia na Europa deprimida pela guerra.
Sergio Leone sonhava com este filme sobre a sua infância em Roma, miúdo da classe média a aventurar-se pelas ruas e cinemas populares - e havia ainda as ruidosas marionetas sici­lianas! Chegou a escrever um argumento, chamou-lhe "O Gang da Viale Glorioso". Mas quando Fellini realizou "I Vitelloni", Sergio deu por encerrado o projecto: Fellini mostrara já o que ele queria mostrar.
Mas o argumento acompanhou-o até ao fim (1929-1989), como aquelas memórias que não nos querem largar. Na verdade, Sergio foi filmando esse argumento - ou ele foi fazendo apari­ções - em todos os filmes da sua carreira de realizador. Mesmo no género em que os italianos (e também alemães) inventaram um Oeste americano no sul de Espanha, no deserto de Almeria, e que baptizaram com o nome de "western spaghetti".
"A atracção do Oeste americano para mim, é isto: o prazer de fazer justiça, sozinho, sem pedir autorização a ninguém. Bang, Bang", dizia Sergio Leone.
"O Bom, o Mau e o Vilão" (1966), [...], numa versão que repõe sequências que só existiram na versão italiana original e que mostra outras que tinham sido retiradas dessa versão (é o mais próximo da visão de Leone), é um filme charneira na carreira do realizador. Terceiro título da "trilogia dos dólares", depois de "Per un Pungno di Dollari"(1964), "Per Qualche Dollare in Più" (1966), participa dessa reinvenção lúdica de Hollywood na Europa, em que os arquétipos de um género foram manipulados com fascínio como se fossem marionetas (bonecos paródicos). Mas o que lhe dá o título de nobreza dentro do "western spaghetti" é o tom de aventura pícara que se intromete, a viagem pessimista pela natureza humana. É que depois da experiência da guerra, a América viera ao encontro de Leone.
"Na minha infância, a América era uma religião. Durante a infância e adolescência (e não sei se ainda hoje consegui ultrapassar isso) sonhei com os espaços abertos da América. Os grandes desertos. O 'melting pot', a primeira nação feita com pessoas de todo o mundo. As estradas longas e a direito - poeirentas ou lamacentas - que começam não se sabe onde e acabam não se sabe onde porque a sua função é atravessar um continente" - citamos "Something to do with death", biografia de Leone, e análise da sua obra, escrita por Christopher Frayling.
"E de repente os americanos reais entraram pela minha vida dentro - em 'jeeps' - para perturbar os meus sonhos. Vinham libertar-me. Eram muito enérgicos, mas também muito decepcionantes. Já não eram os americanos do Oeste. Eram soldados como outros quaisquer, com a diferença de que eram vencedores. Homens materialistas, com a obsessão da posse, amantes do prazeres e dos bens terrenos. Nos Gls que perseguiam as nossas mulheres e vendiam cigarros no mercado negro não vi nada que vira em Hemingway, Do Passos, Chandler. Nem em Mandrake, o mágico do coração grande, ou Flash Gordon. Nada - ou quase nada - das grandes pradarias, dos semi-deuses da minha infância". 
Teria outro momento de aprendizagem, na viragem da década de 50 para a década de 60, quando Hollywood tentava adiar a sua agonia procurando cenários baratos, mudando-se para a Cinecittà e para a Europa. Leone trabalhou como assistente das grandes pro­duções que recrutavam equipas locais para cuidarem da logística de cenas complicadas (gaba-se da sua intervenção na corrida de "Ben­Hur"), e o que aprendeu serviu-lhe para a sua carreira de realizador. Mas perspectivou-lhe, igualmente, o fascínio pela América. Fez-lhe perceber, como aparece citado no livro de Frayling, que a América - imaginário que pode designar um sentido de justiça ou apenas um modo de usar um chapéu num filme de "cowboys" - "era algo que pertencia ao património do mundo, e que os americanos apenas o tinham alugado".
E ainda que "os americanos tinham o hábito horrível, entre outros, de misturar o vinho das suas ideias míticas com a água do 'american way of life', que, já agora, não deve interessar a quem tenha os pés assente na terra. Vejam a Doris Day. Há uma visão da América que é quase totalitária. Um mundo sem conflitos, Abel sem Caim. En­quanto a América, como toda e qualquer sociedade, é na verdade conflituosa, a mentira combate sempre a verdade. Quis mostrar a crueldade daquela nação, estava farto daquela imagem de uma nação de sorrisos brancos. É uma pena que a América seja deixada só aos americanos".
É este o território de "O Bom, o Mau e o Vilão": a paixão pelo cine­ma americano, recriado como brincadeira de infância é com o filtro da experiência italiana, e a traição brutal desse sonho. É esse o território, alucinado, que percorrem as personagens de um dos exemplos mais eloquentes daquilo que Leone queria fazer: "uma fábula para adultos", acenar com o sonho sabendo que ele iria correr mal e prosseguir com um esgar.
Blondie, o Bom (Clint Eastwood), Angel Eyes, o Mau (Lee Van Cleef), Tucco, o Vilão (Eli Wallach) são aventureiros durante a Guerra Civil Americana. Nenhum dos lados do conflito lhes interessa, a guerra é dos outros. O que os faz saltitar num jogo de alianças e traições é um saco de dólares escondido na tumba de um soldado desconhecido.
A guerra é dos outros, do Norte e do Sul, e eles alistam-se ou desertam consoante as conveniências. O Bom, o Mau, o Vilão passam pela batalha como quem passa por um épico e logo a seguir desviam-se do filme histórico para o "western" como aves de rapina.
A guerra é dos outros, mas não há nada que estes caçadores de tesouro façam que outros não façam a dobrar, diz o cepticismo do filme, ao justapor a viagem pícara a um cenário de barbárie. Leone assumia a influência do "Monsieur Verdoux", de Chaplin (1947), em que o seu anti-herói, um "barba azul", desculpava os seus actos com a existência do assassinato como empresa: a guerra. "Esse filme olhava para os aspectos absurdos e caóticos de uma era em que um herói que assassinou várias mulheres podia dizer 'sou um amador comparado com Mr. Roosevelt e Mr. Estaline, que fazem isto a uma escala maior'. Verdoux é modelo para todos os bandidos. Dêem-lhe chapéu e botas e temos um cowboy", disse Leone.
O Bom, o Mau, o Vilão - não os separa nada de essencial, até completam as várias possibilidades das fraquezas humanas. Mas é verdade que Tucco, Tuco Benedicto Pacifico Juan Maria Ramirez, mexicano e bandido, é o espírito pícaro, a primeira e mais memorável das personagens pícaras do cinema de Leone e aquela através da qual o "western spaghetti", com "O Bom, o Mau e o Vilão", resgata a sua hipótese de humanidade e nobreza cinematográfica.
Alarve, infantil, amante da vida e pronto a matar por ganância, aldrabão e terno, é a herança directa, disse Leone, das marionetas sicilianas da sua infância. É um "clown" transbordante, ao lado da frieza de Lee Van Cleef e da presença iconográfica de Clint Eastwood - que, percebendo que o filme não seria dele, como tinham sido "Per un Pungno di Dollari" e "Per Qualche Dollare in Piu", resistiu a entrar; e depois de o ter feito, e sentindo que a associação com Leone não iria fazer mais nada pela sua carreira, bateu com a porta; foi o último filme que fizeram juntos.
O filme é de Tuco e Tuco é Eli Wallach, na época nome conhecido do Actor's Studio, intérprete de teatro que no cinema trabalhara com Kazan ou Huston mas em quem germinava um cepticismo em relação aos filmes. O encontro não prometia. Havia razões para fazer Leone desconfiar, e razões para fazer Wallach fugir. Mas o realizador viu nele "um grande palhaço". E o actor viu em nele "um homem-cinema. Dorme e come cinema. É um homem nervoso. Abre a fecha as mãos constantemente enquanto filma. É tenso, mas tem um toque de má­gico. Tudo o que sei é que como instrumentista gostei de o ver dirigir a orquestra".
É a outra personagem de "O Bom, o Mau e o Vilão": a música de Ennio Morricone, sem a qual, e apesar da dilatação temporal dentro dos planos, das mudanças de escala, do pormenor ao plano geral, corno colagens surrealizantes a fazer jogos de ilusão, o filme não seria a experiência alucinatória que é.
Cada personagem, segundo Leone, tinha o seu "tema", que estava escrito. Cada personagem "era um instrumento musical que interpretava a minha escrita. Neste sentido, joguei com harmonias e contrapontos... Estava a representar o mapa existencial de três seres humanos como uma amálgama de todas as faltas humanas... Por isso a música foi de impor­tância central. Tinha de ser complexa, com humor, lírica, trágica e barroca. Tornou-se um elemento da acção. Foi o caso da sequência no campo de prisio­neiros, em que uma orquestra toca para afogar os gritos dos torturados" - quando Tucco é torturado e a música afoga os seus gritos, momento investido de fortíssima carga emotiva porque com ele irrompe a biografia do realizador, a sua memória da ocupação nazi, quando a experiência da deportação se tornou visível aos seus olhos e da sua família.
E quem não se lembra do tema principal, chama­mento lancinante, recriação do grito selvagem do coiote? Morricone, confirmaria o compositor, adap­tou ao longo do filme o tema a cada protagonista, usando um instrumento diferente, flauta, guitarra ou baixo, para a mesma frase. Misturou música e sons naturais, atordoando o conceito de banda sonora - o grito de Tucco no final, "You know what you are? Just a dirty son of a .. .", dilui-se nas vozes dos cantores, transforma-se em música.
A memória dos participantes não vai toda no mesmo sentido (o realizador dizia que a música pré­gravada tinha sido tocada na rodagem; os actores não se lembram...), mas é indesmentível que Leone conhecia a banda sonora quando filmou e que uma versão definitiva das composições foi gravada de novo já perante a montagem final. O que foi decisivo para a meia-hora do duelo terminal (melhor, o "trielo") entre Blondie, Angel Eyes e Tucco num cemitério que Leone quis parecido com a arena de circo da antiguidade, rodeado de mortos. É uma coreografia de olhares, planos de mãos, poses, gestos - mais do que uma cena de acção - que parece escrita em música.
Essa foi a relação aprofundada na obra seguinte, "Era uma vez no Oeste", onde, aí sim, a rodagem decorreu com música a tocar no "plateau". É para esse filme, e para um certo lado de meditação viscontiana sobre o fim de uma era, como tem sido reparado, que" O Bom, o Mau e o Vilão" aponta. Porque Leone queria mesmo distanciar-­se do "western spaghetti". Chegou até a comunicar a Lee Van Cleef, Eastwood e a Wallach que os queria de novo para o pré-genérico de "Era uma vez...", mas só o tempo suficiente para serem mortos. Diz a lenda que Clint Eastwood, não totalmente apaziguado com o cineasta que o transformara no mítico "homem sem nome", recusou.
Vasco Câmara, Público, 11/06/04