Lírio Branco

Ciclo do mês - Junho/Julho 2020

2 JUN | Esplanada IPDJ | 22H00
Lírio Branco, Hideo Nakata, Japão, 2016, 80', M/18

sinopse, ficha técnica e trailer: aqui

EROS DE PASSAGEM
O cinema japonês, a sua “grande história” e aqueles que a construíram, chegou sempre tardiamente ao Ocidente. Primeiro com grande espanto pelo desconhecimento, a que se seguiria sempre uma grande admiração, da parte dos cineastas, da parte dos críticos. Muitas dessas descobertas chegaram-nos pelos festivais e, sobretudo, através de França. Assim fomos descobrindo que Mizoguchi, Ozu, Naruse, Akira Kurosawa e tantos outros são indiscutivelmente figuras maiores e incontornáveis da história do cinema mundial. Mas também descobrimos outros cineastas, a “nova vaga” do cinema japonês, muitos filmes de género. Em Portugal, a Leopardo Filmes (e as suas antecessoras Atalanta Filmes e Clap Filmes), de Paulo Branco, desempenharam, e continuam a desempenhar, um papel fundamental na divulgação desta que é uma das cinematografias mais relevantes na história do cinema. Quer dando a ver os cineastas contemporâneos das últimas três décadas (desde os filmes de Imamura, Oshima, Kitano, Edward Yang, Kyoshi Kurosawa, Koreeda até ao mais recente Ryūsuke Hamaguchi, entre outros), ou fazendo-nos (re)descobrir, muitas vezes estreando finalmente os seus filmes em Portugal, os grandes mestres, como os referidos Ozu, Mizoguchi, Naruse e Akira Kurosawa, ou o contemporâneo de Imamura e Oshima, Kôji Wakamatsu. A partir de 18 de Junho, e ao longo de cinco semanas, no cinema Nimas (com posterior exibição noutras salas do país) a Leopardo filmes traz-nos, numa nova aposta de Paulo Branco, mais 10 inéditos do cinema japonês, 10 filmes de um “sumptuoso género”, como lhe chamou Jean-François Rauger da Cinemateca Francesa, o “Roman Porno” (roman poruno), que os estúdios Nikkatsu criaram no início dos anos 70, e que, como escreveu Stephen Sarrazin, que há várias décadas trabalha sobre o cinema do Japão, “faz finalmente parte da história do cinema japonês” (alguns destes cineastas surgiram numa retrospectiva dedicada aos estúdios Nikkatsu, organizada pelos grandes críticos Shigehiko Hasumi e Sadao Yamane no festival de cinema de Roterdão; uma parte do programa especial do centenário da Nikkatsu, organizado em 2012 na cinemateca francesa, foi também dedicada aos filmes e realizadores que fizeram a história do género). A Nikkatsu, um estúdio fundado em 1912 (e que, como outros grandes estúdios, se ocupava da produção, distribuição e exibição), um dos mais antigos do Japão, um dos maiores da Ásia, cuja história testemunha não só as transformações do cinema mas também da sociedade japonesa ao longo do século (nele trabalharam, entre outros, Kenji Mizoguchi, Seijun Suzuki, Shohei Imamura…), no início dos anos 70, com a concorrência da televisão, confrontou-se com uma queda abrupta dos espectadores das salas. Para enfrentar as dificuldades financeiras e uma mais que certa falência, decidiu criar uma linha de produção de filmes de género, a que chamaria “Roman Porno” (Roman Poruno, ou “pornografia romântica”, num acto de “quase-provocação” ― eram os anos 70, não o esqueçamos). A forte censura no Japão impunha várias restrições e os realizadores estavam proibidos de mostrar os órgãos genitais ou os pêlos púbicos (o que levou a estratagemas originais, alguns gráficos e outros). A Nikkatsu impunha, por seu lado, uma rodagem rápida (duas semanas no máximo), uma duração entre 70 a 90 minutos, a introdução de um número fixo de cenas eróticas. Mas, à parte estas regras, a liberdade artística era total e os realizadores podiam abordar os assuntos que quisessem, da forma que quisessem. A contra-cultura japonesa encontrou no “Roman Porno” um terreno de experimentação inédito para os jovens realizadores com talento e que tinham vontade de correr riscos. Estes filmes afirmavam-se pela audácia dos assuntos que tocavam, exploravam sensações fortes, uma intensa pulsão erótica, uma sexualidade inquietante, por vezes crua (alguns destes jovens realizadores nutriam uma especial paixão pelos surrealistas franceses e o “amour fou”, pelo erotismo de Georges Bataille, pela escrita de Sade) e, ao mesmo tempo, surpreendiam com as suas invenções formais. Trabalhavam na Nikkatsu alguns grandes mestres do cinema japonês, e, com eles, os melhores técnicos. O que veio trazer uma maior qualidade a estes filmes. E assim (ainda Jean-François Rauger) nasceu e se afirmou toda uma geração de cineastas talentosos, dotados, perspicazes, profundos, admiráveis, entre eles, Tatsumi Kumashiro (de quem veremos dois filmes: Os Amantes Húmidos — 1973, e O Êxtase da Rosa Negra — 1975), Noboru Tanaka (Noites Felinas em Shinjuku — 1972, espécie de remake de Rua da Vergonha, de Mizoguchi), Masaru Konuma (A Senhora de Karuizawa —1982) e Toshiharu Ikeda (Angel Guts: Red Porno — 1981), que construíram uma verdadeira idade de ouro do cinema japonês (e talvez o último grande momento crucial na sua história), expressando uma modernidade ao mesmo tempo revoltada e desencantada, mórbida e ardente, que permitiu a descoberta de um outro Japão, mais imediato, mais carnal e mais tangível, mais liberto no que diz respeito à representação sexual. Estes realizadores trabalharam longos anos no estúdio. Primeiro como assistentes de realização (podemos dizer que foram descobertos, cresceram e provaram depois o seu talento, um pouco à maneira do que acontecera nos EUA, onde Roger Corman descobrira e dera a mão a toda uma geração de grandes cineastas), trabalharam também uns com os outros (Toshiharu Ikeda, que se tornaria uma celebridade de culto, foi assistente de Masaru Konuma — tal como Hideo Nakata, que seria convidado para realizar um dos filmes do reboot de 2016), e, vindos de meios diferentes, compartilhavam uma cinefilia actualizada (Tatsumi Kumashiro tem referências explícitas a Godard ou Mike Nichols; Konuma refere muitas vezes Renoir, outras Pasolini, mas, sobretudo, ele que, poderíamos dizer, era um cineasta de mulheres, muitas actrizes ocidentais, desde as italianas Sophia Loren e Gina Lollobrigida, as francesas Danielle Darrieux e Françoise Arnoul ― do French Can-can, de Renoir, ou Gloria Graham e Marilyn Monroe), uma paixão pela literatura (os surrealistas, Stendhal ― A Senhora de Karuizawa adapta livremente O Vermelho e o Negro ―, Georges Battaile, Sade, ou, no Japão, Junichiro Tanizaki). O Roman Porno também teve grandes actores e, sobretudo, actrizes. Começava aqui toda uma nova gramática das representações eróticas no cinema, e as actrizes, entre elas Naomi Tani, figura icónica do cinema japonês, ou a actriz de televisão Naomi Kawashima, tiveram um papel importantíssimo na criação do género. O crítico e historiador Tatsuo Uchida refere um interesse cada vez maior no “Roman Porno”, que passou a fazer parte da cultura pop no Japão. Os anos 70 foram uma “idade de ouro” do cinema japonês, e os filmes da Nikkatsu, juntamente com a Nova Vaga japonesa, os filmes da Toei, ou os de Wakamatsu vieram incarnar uma outra liberdade. E têm vindo a conquistar públicos novos, ao longo dos anos. Tornou-se mítica uma sessão de 2001, numa sala de mais de mil lugares, em Shibuya, onde um programa alargado de uma noite inteira, suscitou longos aplausos de uma plateia, constituída por mulheres na sua maior parte, que enchia a sala por completo. As salas de arte e ensaio têm vindo a organizar regularmente ciclos dedicados ao “Roman Porno”, que assim chega a novos públicos. No Ocidente tiveram lugar os programas especiais no festival de Roterdão, ou, incluídos num programa maior dedicado ao centenário da Nikkatsu, na Cinemateca francesa, que já referimos, e também na Cinemateca de Madrid, no Lincoln Center de Nova Iorque. Os estúdios Nikkatsu e o género “Roman Porno” acabariam por revelar verdadeiros “autores”, hoje indiscutíveis, como Tatsumi Kumashiro, Noburu Tanaka e Masaru Konuma. Em 2016, celebrando o 45º aniversário do “Roman Porno”, a Nikkatsu desafiou cinco dos mais importantes realizadores japoneses de hoje para o projecto Roman Porno reboot, do qual resultaram 5 novos filmes, realizados com as mesmas regras, e que dialogam e se confrontam com obras da primeira fase do género, prolongando a sua longevidade. Alguns destes filmes foram exibidos no festival de Locarno e noutros festivais de cinema. Hideo Nakata, antigo assistente de Maseru Konuma, presta-lhe homenagem e ao seu filme A Senhora de Karuizawa, com Lírio Branco; Akihito Shiota “retoma” Os Amantes Húmidos, de Tatsumi Kumashiro, com À Sombra das Jovens Raparigas Húmidas; O Êxtase da Rosa Negra, também de Tatsumi Kumashiro, inspira o grande Isao Yukisada (Gymnopédies Escaldantes). O antigo assistente do realizador Koji Wakamatsu, Kazuya Shirashi, “revisita” Noites Felinas em Shinjuku de Noboru Tanaka em O Alvorecer das Felinas; e Sono Sion volta a “quebrar as regras” com Antiporno, como Toshiharu Ikeda já o fizera com Red Porno, um dos mais perturbadores episódios da série Angel Guts. No final de 2019, a editora francesa de clássicos Elephant Films, distribuiu em França uma caixa (Blu Ray e DVD) com estes filmes, que a crítica francesa aplaudiu (um extenso dossier nos Cahiers du Cinéma, críticas no Le Monde, Libération e muitos outros), que nos chamou a atenção e acabaria por nos “empurrar” para esta aventura de distribuição.
Leopardo Filmes

mais leituras
O cinema erótico japonês ajuda a desconfinar, Inês N. Lourenço, DN