O Traidor / Il Traditore

Ciclo do mês janeiro 2020

DIA 14 | 21h30 | IPDJ
O TRAIDOR, Marco Bellocchio, IT/FR/DE/BR, 2019, 145’, M/16

 trailer, sinopse e ficha técnica: aqui

Declaração do realizador
O TRAIDOR é mais a história de Tommaso Buscetta do que a da Cosa Nostra. Tommaso Buscetta é inconstante e movimenta-se constantemente, tanto na sua vida privada como nos seus relacionamentos pessoais. É um homem fora do vulgar, inteligente, sedutor, eficaz e dotado duma autoridade natural. Mafioso leal à Cosa Nostra, mas também aos seus próprios princípios pessoais, não receia desafiar a autoridade. Do final da década de 70 ao início da década de 80, ele enfrenta a crescente força dos Corleonesi, chefiados pelo intransigente Totò Riina. Sem piedade e evidenciando um desprezo pelos princípios básicos da Cosa Nostra, o novo pequeno grupo dos Corleonesi mata mulheres e crianças e elimina tudo o que estiver no seu caminho. Neste grupo, não há lugar para Tommaso Buscetta. Quando, em 1982, ele se muda para o Rio de Janeiro com sua amada esposa e filhos, Buscetta pretende pôr fim ao seu envolvimento com a Mafia. Mas é impossível deixar a Mafia e a organização persegue-o. No entanto, a polícia brasileira encontra-o primeiro e extradita-o para Itália.
Buscetta propõe então um acordo à Justiça italiana: em troca da sua protecção e sobrevivência, ele colaborará para desmantelar a Mafia. Depressa conhece o imponente, inflexível e tenaz juiz Giovanni Falcone, e o público é mergulhado nas profundezas da organização siciliana: assassinatos, tiroteios e esquemas. Este é o pano de fundo dos relatos de Buscetta, que se revela o maior mistério da Cosa Nostra: ninguém sabe o que o leva a colaborar. Parece motivado pela vingança e pelo desejo de desmantelar uma Mafia que já não se alinha com os seus valores. Visto como um traidor por desertar para o lado do inimigo, Buscetta não se revê nesse papel. No decorrer de suas confissões, ele sublinha o abismo que existe entre a sua Mafia e a dos Corleonesi. Esta é a sua forma de fazer justiça à verdadeira Cosa Nostra. No seu relato, o verdadeiro traidor da Cosa Nostra é Totò Riina. A traição é um tema recorrente incansavelmente explorado no cinema, precisamente porque nos faz reflectir sobre a mudança. Pode um homem mudar real e profundamente no decurso da sua vida, ou apenas finge mudar? E essa mudança é uma forma de cura, de arrependimento? Buscetta, que toda a sua vida recusou o rótulo de “informante”, encetou este processo de cura, de redenção, para se tornar um novo homem? Ou quis, ao invés, criar a sua própria justiça?

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Um pentito no seu labirinto
Histórias italianas são com Marco Bellocchio. Só nos últimos anos, e para nos cingirmos a filmes estreados em Portugal, filmou o rapto de Aldo Moro pelas Brigadas Vermelhas (Bom Dia, Noite), a ascensão de Benito Mussolini (Vencer), e evocou o desastre de Superga em que morreu toda a equipa do "gran Torino" (Sonhos Cor de Rosa). Agora, em O Traidor, foca uma das mais trágicas sagas italianas, a da Mafia, a partir da história do "arrependido" ("pentito") Tommaso Buscetta, cuja colaboração com a justiça deu origem aos mega-processos dos anos 80 e 90 em que centenas de mafiosos foram postos atrás de grades.
A organização do filme preserva um espírito de "saga" , com a acção a prolongar-se entre 1980 e 2000 (com curtos flashbacks a recuarem mais no tempo), mas onde a tentação de fazer "épico" é cuidadosamente esvaziada - como se o balão do relato de gente bigger than life fosse furado e fizesse o "épico" converter-se em "ópera bufa". É, de resto, como ópera bufa (ou pelo menos como commedia muito italiana) que Bellocchio filma as cenas de tribunal durante os mega-processos, o caos sempre à beira de se instalar, as jaulas repletas de mafiosos indisciplinados a desafiarem a calma do mais paciente dos juíz, os duelos verbais nas acareações entre Buscetta e aqueles que ele denunciou. Não há gandeza alguma na Mafia: o olhar de Bellocchio rima a observação do juiz Falcone num dos primeiros encontros com Buscetta, quando o magistrado pede ao pentito que pare com a conversa sobre a nobreza da Cosa Nostra de antanho, "que já não se aguenta" (sem que esse deixe de ser o principal argumento de Buscetta, eventualmente até para si próprio, para justificar a delação: foi a Cosa Nostra que se degradou e perdeu valores, ele permaneceu igual). Não há grandeza nem nobreza na perspectiva de Bellocchio, apenas homens mesquinhos, patéticos à beira da obscenidade (e é preciso dizer, pensando nos actores que desempenham secundários famosos como Beppe Caló ou Totó Riina, que O Traidor é um triunfo de casting).
Triunfo de casting é também Pierfrancesco Favino, actor que interpreta Buscetta com uma permanente allure de Bud Spencer angustiado. Este homem, por quem a câmara de Bellocchio não pode deixar de sentir uma certa cumplicidade (mesmo uma certa compaixão), atravessa o filme como um mistério impenetrável está no seu labirinto, e é como se Bellocchio se divertisse a gizar hipóteses de saída desse labirinto, uma luz que ilumine aquela personalidade, sabendo sempre que ela pertence à escuridão (e é na escuridão, na noite, que o filme se conclui, nas duas cenas finais em que O Traidor se despede da personagem de Buscetta). Em última análise, nunca filmando contra aquele homem, preservando-lhe, a ele e ao seu certamente turvo sentido de honra ("io sono um uomo di onore", diz ele mais do que uma vez), uma espécie de benefício da dúvida, retratando com magoada dignidade a sua solidão, sobretudo quando se mete com poderes bem mais fortes do que o dele (a cena em que Buscetta, quase um "herói popular" quando denunciou mafiosos que eram apenas mafiosos, é esmigalhado em tribunal quando ousou apontar mais acima e denunciar Giulio Andreotti). Grande personagem, óptimo filme.
Luís Miguel Oliveira, Público