Plant in My Head + Pedro, o Louco

Festa do Cinema ao Ar Livre 2020

5ª F - DIA 13 AGO | 21h45
ESPLANADA IPDJ (por motivos a que somos alheios, fomos obrigados a mudar o local de exibição da sessão, inicialmente prevista para o Jardim da Alameda)

lotação: 100 lugares

PLANT IN MY HEAD, Pedro Maia, 2014, 11’  
PEDRO, O LOUCO / PIERROT LE FOU, Jean-Luc Godard, FR/IT, 1965, 105', M/12

sinopses, ficha técnicas, trailer: aqui 

críticas

Ama-se e é God, odeia-se e é Godard. "Pedro, o Louco" é o mais poético dos filmes dele, de deus. Largo, em cinemascope. Veloz como um descapotável vermelho. Explosivo e terrorista. Mentiroso como toda a paixão. Por amor à verdade disse-se que era o último filme romântico, obstinado em filmar a natureza com panorâmicas e a morte em planos fixos. Por provocacão chamaram-lhe "You Only Live Once", clássico americano gue filma a aventura de uma mulher que sabe bem o que quer e de um homem que só sabe que a quer a ela. Pelo óbvio prazer de jogar com as palavras disse-se, enfim, que era um "filme negro" a cores. Ninguém se enganou, "Pedro, o Louco" é tudo isso e dele só se pode falar usando a expressão 'beleza sublime'. Godard filmou-o em 1965. Juntou Belmondo a Anna Karina e fez deles os descendentes do surrealismo, inventando-lhes um amor louco. Vão vivê-lo em cada rio, apartamento, árvore. Na França toda. Uma réplica de Karina resume com elegância essa aventura: "Conhecendo-me, conhecendo-te, nunca, nunca prometas amar-me toda a vida." Rimando homem com mulher, cinema com vida, é um filme de guerrilha. Godard pôs Samuel Fuller, o mais desapiedado dos cineastas americanos, a anunciá-lo: "Um filme é como uma batalha. Amor, ódio, acção, violência, morte. Numa palavra: emoção:" Só podia estar a falar da aventura, vermelho de sangue, azul de céu, com que Pierrot, aliás Ferdinand, e Marianne sacodem os píncaros de aborrecimento e cinismo das suas vidas (podia ser a nossa) para serem um Robinson Crusoe e Sexta-Feira de tragicomédia. É engraçado e desconcerta que, fascinado por tudo o que pára o tempo (a pintura, os romances), "Pedro, o Louco" passe imune a todo o tempo. E desconcertam-nos os tempos da partitura de Antoine Duhamel, a voz de Karina a cantar 'Ma ligne de chance'. Sombra de Rimbaud, "L'éternité c'est Ia mer allée avec le soleil" devia ser a epígrafe deste filme que nos ensina que, para tratar a vida, o cinema precisa primeiro de vivê-la.
Manuel S. Fonseca, Expresso, 23/12/2012

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Já passaram 32 anos [artigo escrito em 1997] desde o ano de produção do descomunal caleidoscópio godardiano intitulado "Pedro o Louco"/'Pierrot le Fou". É quase um terço da idade do cinema. Mas daí para cá foram poucos os filmes que ousaram experimentar tamanha dimensão, arrojo formal, delírio poético, candura e desencanto. Ou seja, temos à frente um filme com um critalizado estatuto de clássico mas, simultaneamente, de inegável apelo contemporâneo. Desde logo, no genérico, acedemos à evidência dessa dupla condição: com a fabulosa partitura musical de Antoine Duhamel a remeter-nos para um tempo de enlevo clássico e a formação das letras sobre o fundo negro a predispor-nos para a aprendizagem de um novo léxico, de contornos revolucionários, que ainda tacteamos com o fascínio da descoberta. Isto para dizer que "Pedro o Louco" não envelheceu uma ruga que fosse — e nem sequer falemos mais disso.
Tal como na altura da estreia, pode-se agora continuar a manter uma simplista e sumária sinopse: Ferdinand Griffon (Jean-Paul Belmondo) — burguês, casado e com filhos — abandona tudo e embarca numa deriva geográfica e emocional com Marianne Renoir (Anna Karina), traficante de armas e afectos, até a um fim trágico mas anunciado; porque apesar da jubilação formal colorida, "Pedro o Louco" nunca esconde que é uma máscara mortuária. O fim só pode ser a sua confirmação.
Cenários alternativos: "Pedro o Louco" é a reformulada história da fuga dos dois meninos de "A Sombra do Caçador" , de Charles Laughton — ela com a boneca fransformada em cão de peluche, ele com boné de marinheiro e um papagaio sobre o ombro —, a descerem o rio acossados por um Robert Mitchum que se disseminou pelo tempo e espaço; é a intemporal narrativa melodramática da impossibilidade da manutenção do par ou, então, da reiteração da solidão essencial (e existencial) do(s) indivíduo(s); é a história de um regresso primordial às origens — infância, natureza e (porque estamos num Godard) cinema — para escapar à obrigatoriedade dos códigos de uma sociedade coerciva; é também a história da sublevação, violenta mas nostálgica, das formas modernas perante os modelos do reportório artístico clássico: a complexidade arabesca da escrita de Joyce a fixar-se num verso de Rimbaud, a desmultiplicação de perspectivas em Picasso a olhar a unidade perdida em Renoir, a percursão duma canção pop escutada numa "juke-box" a reinterpretar a frase melódica na sinfonia clássica...
Acrescentar que o filme foi baseado nas páginas de um anódino romance policial de Lionel White, "Obsession", é ainda consolidar mais o logro. Faça-se então justiça à obra: em "Pedro o Louco", Godard não filma nada em concreto ou, ao menos, nada com nome e forma. Como Velásquez, citado na abertura do filme, fixa não as coisas mas o espaço entre elas. Quer dizer, o fosso trágico que separa o cinema da vida, os gestos da linguagem, a literatura da música, a música da pintura, a acção do pensamento, a eternidade idílica do amor da eternidade da morte ou a ideia da palavra. E também o seu oposto, a liberdade e lirismo presentes na possibilidade (cinematográfica) de unir o que está separado. Por isso, os "raccords" surgem em "Pedro o Louco" como se fossem milagres. As tantas parece que nunca tínhamos visto um plano a dar lugar a outro.
E também um filme-mundo. Não só porque integra a heterogeneidade das suas matérias como porque se substitui a ele. Assim, Ferdinand perde o direito ao verdadeiro nome e ganha outro, virtual e cinematográfico. Mesmo que inscreva as letras que compõem o seu nome sobre a camisola, conhecêmo-lo ainda assim por Pierrot. Pierrot (prossigamos com ele) fala com o espectador porque não sabe viver para além da projecção na tela e, consequentemente, cumpre-se enquanto personagem. Porque é refém do cinema, aqui exílio da vida, entra com o carro pelo mar adentro, é cumplice de mortes por amor, canta no bosque, conta histórias para ganhar dinheiro, substitui o acto pela sua evocação imóvel ("Ponho a minha mão no teu joelho" , diz ela/ "Eu também Marianne", diz ele; "Beijo-te por toda a parte" / "Eu também Marianne"...), conta até 137 até ser traído, pinta a cara de azul e armadilha-se com dinamite, rouba carros para prosseguir na rota de colisão com a morte dentro do "campo de batalha" que o cineasta Samuel Fuller evoca para configurar o cinema numa das cenas iniciais do filme. "Um campo de batalha onde se confronta o amor, o ódio, a violência, a acção ou a morte. Numa palavra, as emoções" — é uma das mais queridas e recorrentes citações da cinefilia e de "Pedro o Louco", tanto quanto é ignorada a lacónica reacção de Belmondo, falta de entusiasmo reveladora da sua posição (e condição) interna relativamente ao enunciado de Fuller.
Pierrot e Marianne — que "atravessam a França como aparências" — vão de encontro a uma morte que mima a sua natureza espectral. Reunem-se à imponderabilidade do espaço, da música, do tempo e do azul do mar, coordenadas imateriais que Godard soube filmar como abstracções. Quando tudo está terminado — e Pierrot deseja esse fim ao lamentar a necessidade em prosseguir com a história plena de som e fúria e a impossibilidade em se fixar num congelado momento de perfeição — ficamos a vogar algures sobre a quietude sussurrada do mar. Ao cinema, arte de espectros, sucede o cinema para além dele. E dela — a morte.
Miguel Gomes, Expresso, 12/12/1997