Bacurau

ciclo do mês março 2020

Ciclo (in)justiças

DIA 3 DE MARÇO | IPDJ | 21H30
BACURAU, Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, Brasil, França, 132’, 2019, M/16

trailer, sinopse e ficha técnica: aqui

entrevista aos realizadores

Pouco depois da apresentação de Bacurau à imprensa no festival de Cannes, onde o filme concorreu para a Palma de Ouro, o encontro com a dupla de realizadores brasileiros, Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Depois do realismo social e urbano de O Som ao Redor, em 2012, a sua primeira longa, e de Aquarius, em 2016, também selecionado para Cannes, Kleber e Dornelles penetram no terreno do que se poderia chamar um western brasileiro, ou até uma variante de Mad Max e até mesmo de Hunger Games. Mas, claro, sempre em pano de fundo com essa sombra da realidade politico-social que se vive no Brasil.
Insider – Mesmo dentro da forma de um western brasileiro, percebe-se em Bacurau que existem diversos pontos de contacto entre os seus outros filmes. Concorda?
Kleber Mendonça Filho – Acho que sim. Eu sinto-me bastante confortável com este filme. Foi desenvolvido com o Juliano (Dornelles), com quem trabalho há já 16 anos. Pode parecer diferente, mas pensei muito em O Som ao Redor, por exemplo.
É isso. Parece existir aqui uma certa continuação, mesmo que não evidente.
KMF – Tenho de concordar. Toda a ideia deste grupo de pessoas estarem fora do mapa pode ser também aquela mulher (Sonia Braga) no Aquarius, aquele edifício fantasma, que eles acham que não deveria estar ali. Basicamente é a mesma coisa. É um design do mundo de acordo com especificações precisas. Algo que se torna num ideal assustador. Ou seja, como cidadãos podemos desaparecer do sistema um dia, não é?
Exato. Mas sentiu, neste caso, que deveria estar perto dos mais fracos, dos oprimidos, daqueles que não contam? Que nem sequer estão no mapa?
KMF – Isso foi uma decisão tomada de acordo com a especificidade do género. Quando decidimos que iriamos assumir um género cinematográfico específico – bem mais que O Som ao Redor ou Aquarius, que estão dentro de um certo realismo social. Neste caso, o género está bem mais vincado.
Algo a que a banda sonora do John Carpenter lhe confere um toque de ironia suplementar…
Juliano Dornelles – Adorei essa ideia. Um tipo que faz capoeira, e faz música com um instrumento improvisado e ancestral (uma corda de aço que simula uma de guitarra).
Chegou a falar com o Carpenter (em Cannes)?
KMF – Sim, estivemos no hotel onde ele estava cerca de uma hora e meia. É uma personagem singular, mas foi algo rápido devido à projeção que tinha. Quando descobri os filmes do Carpenter aos 14 anos pensei que poderia fazer algo semelhante, porque eram filmes curtos e muito fortes. O Halloween, Sexta-Feira 13, The Fog, etc. Mas é incrível como ele está sempre a falar do Howard Hawks, ao passo que eu estou sempre a falar do John Carpenter. Ou seja, acaba por haver aqui uma relação estranha. (risos)
Acha que essa proximidade o levou também a escrever a profissão de crítico de cinema? De resto lembro-me de fazermos algumas entrevistas em conjunto aqui em Cannes…
Sim, claro, fiz muitas entrevistas. Na verdade, sinto falta disso. Mas encaro hoje a crítica de cinema como uma paixão antiga. Continuo a gostar dela e ela de mim, mas já não somos  casados (risos). A grande diferença é quando entro na sala de conferências de imprensa, onde eu fui centenas de vezes, mas agora para me sentar na cadeira no palco e vos enfrentar a vocês. É muito estranho.
O filme tem um lado político alegórico muito forte. Algo inevitável ao momento que vive o Brasil hoje em dia?
JD – No Brasil vivemos um momento particularmente inquietante do ponto de vista político. A história continua a repetir-se da forma pior possível. As tensões internas que vemos surgir do filme podem escapar a alguns, mas são repetições de um sistema que esta partido na História. Esta nova situação remete-nos para uma distopia em que se recuperam os piores aspetos das últimas décadas. Na verdade, parece existir uma certa nostalgia da ditadura militar dos anos 60 em que o poderoso homem branco manda, e em que a comunidade gay e as outras minorias se escondem sombra.
Acha que Bacurau pode ajudar a essa necessidade de consciencialização?
JD – Espero que este filme ajude as pessoas a sentirem-se bem consigo próprias e a reagirem fazendo ago pelo seu país. Acho que as pessoas estão muito deprimidas e tristes. O que se passa é uma vergonha.
KMF – Ainda ontem a Folha de São Paulo, o principal jornal brasileiro, uma jornalista ficou comovida pelo filme e escreveu uma matéria que se tornou viral. Ela assumiu o ponto de vista de uma cidadã que está zangada com o que se está a. E usou o filme como uma catarse para falar em tudo.
JD – Este governo louco está a perder popularidade a cada dia que passa.
No início do filme fala-se de uma pequena aldeia que fica fora do mapa, mas fica também a ideia do movimento revolucionário que pode acontecer.
JD - Sem dúvida. Eles fizeram o seu próprio mapa.
KMF – Em certo sentido, o nosso filme é uma forma de rebelião contra o que está a acontecer no Brasil. Embora tenham existido outras formas de rebelião, algumas com sucesso, mas outras arrasadas. Para um filme politico e fantasista, um western onde se usa a violência, mas com acesso a armas de um museu, parece-me uma solução bastante aceitável. E que diz muito.
Sem dúvida. Falemos um pouco do casting. Para os vilões do filme porque decidiram não escolher atores conhecidos, como o grupo de turistas americanos que se converte numa tropa especial?
KMF – Tentamos apenas encontrar atores capazes de passarem por americanos comuns. No fundo, pessoas normais capazes de embarcar numa aventura, mesmo com alguma preparação.
Mas basta poder contar com o Udo Kier para tudo assumir um contorno bem diferente…
KMF – É verdade, ele é o suficiente para contrabalançar os outros elementos.
Claro, e as piadas nazis, só chegam depois dele aparecer… (risos)
KMG – Exato. Conheci o Udo em Palm Springs. Mas quando me apresentaram como um brasileiro, ele que estava de costas virou-se e disse: “Eu nunca fui amante do Fassbinder…” (risos) E eu disse: “Ok, prazer em conhecê-lo, Udo.”… Depois passámos uma hora a beber e a falar. Foi aí que percebemos que ele poderia ser o nosso homem.
(risos) Como o descreveriam?
KMF – Ele tem um ótimo sentido de humor, é anárquico e doce ao mesmo tempo. Ou seja, uma combinação fascinante. É também muito louco. Ou seja, tem tudo numa dose certa.
JD – Para além de uma energia inesgotável.
KMF – Sim, lembro-me de uma ocasião, depois de dez horas de trabalho no Sertão, com 37º, fazemos um intervalo para tomar um duche. Entretanto, ele bate à minha porta e diz: “Let’s drink!” (risos)
Hoje em dia muitos brasileiros decidem viver em Portugal. Não é só a Madonna, que entra na banda sonora do filme… No vosso não tencionam sair do Brasil apesar de tudo o que se passa?
KMF – Na verdade, estou a ler alguns guiões e poderei vir a fazer um filme fora do Brasil Mas gosto muito do meu país e da minha cidade, o Recife, por isso gostaria de continuar a viver no Brasil. Embora passe algumas temporadas em França com a minha mulher, que é francesa. Vamos ver como as coisas evoluem. Mas não está fácil.
JD – Eu não estou a pensar ainda em sair. Mas as coisas estão a ficar assustadoras.
O Lunga, o Silvério Pereira, tem um papel importante também, não acha?
JD – O Lunga é uma personagem interessante. Ele faz parte do universo LGBT, é quase um fora da lei, porque ele (ou ela) esconde a sua identidade.
KMF – No fundo, ele é uma variante do cangaceiro dos anos 60, que eram fora de lei que foram caçados por uma secção radical da polícia, e capturados anos depois, executados e massacrados de forma violenta. No fundo, eram um pouco como o Lunga, davam nas vistas, usavam roupa vistosa. Eram personagens bem interessantes. Mas odiavam a polícia e os políticos. O Lunga é um descendente distante deles.
Paulo Portugal, insider

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crítica

«BACURAU» – UM FUTURO DEMASIADO PRÓXIMO DO PRESENTE
A melhor forma que encontro para resumidamente descrever “Bacurau” (2019) é como se um episódio da série “Black Mirror” (2011-presente) se misturasse com “Django Unchained” (2012) ou “Inglourious Basterds” (2009) do realizador americano Quentin Tarantino. “Bacurau” é um raro filme brasileiro, realizado por Kleber Mendonça Filho em parceria com Juliano Dornelles, que junta o western e a ficção científica. Apesar de, como o realizador Kleber Mendonça Filho afirma numa entrevista: “Bacurau é muito um filme sobre o meu êxtase de ir ao cinema quando eu o descobri, adolescente e um jovem adulto”, o filme não deixa de ter uma enorme carga política se tivermos em conta a situação social e económica do Brasil, bem como a posição do atual Presidente Jair Bolsonaro em relação à cultura e em especial ao cinema brasileiro.
“Bacurau” começa com a frase: “Oeste de Pernambuco. Daqui a alguns anos…”. A história passa-se no interior no Brasil, mais concretamente numa aldeia chamada Bacurau. Teresa (Bárbara Colen) regressa à sua aldeia natal para estar presente no funeral da sua avó. Encontramo-nos num futuro onde execuções de criminosos são transmitidas em directo na televisão. Teresa, que é médica, regressa ao sertão, levando com ela medicamentos que, devido às políticas de Tony Junior (Thardelly Lima), o “perfeito”, são escassos na aldeia. Do mesmo modo, a água é de igual forma rara, chegando à população através de um camião. Pouco depois da chegada de Teresa e do funeral da sua avó, os cidadãos de Bacurau descobrem que a sua aldeia desapareceu dos mapas online. A aldeia torna-se um local abandonado, sem água, sem alimentos e sem cobertura de rede móvel. O clima de medo e incerteza instala-se. A vida dos habitantes de Bacurau mudará para sempre quando é avistado um drone que se assemelha a um disco voador alienígena e quando um casal, que aparentemente pratica motocross, chega à aldeia.
Revelar mais da história tiraria a emoção do que se passa em Bacurau depois dos habitantes da aldeia perceberem que estão por sua conta. Em todo o caso, Kleber Mendonça Filho, questionado sobre a carga política do seu filme, responde do seguinte modo: “Queria fazer uma história de ação, aventura, mas que também tratasse de questões que são cíclicas, crônicas no Brasil. Ponho na tela, por exemplo, a separação invisível e histórica entre Sul e Sudeste, de um lado, e o Nordeste, de outro. A desigualdade está retratada lá, assim como o problema do abastecimento de água, o político corrupto, os supremacistas brancos, o caminhão que despeja livros no meio da rua, o descaso com a educação.” Apesar de admitir nunca ter pensado em fazer um filme político, o que acontece é que, infelizmente, o seu filme pode ser visto com uma metáfora do Brasil dos dias de hoje.
Acerca da posição do actual Presidente do Brasil em relação ao cinema e à cultura, Kleber Mendonça Filho não deixou a questão sem resposta. Nos créditos de Bacurau surge a seguinte mensagem: “A realização e distribuição desse filme gerou mais de 800 empregos diretos e indiretos. Além de ser a identidade de um país, a cultura é também indústria.”
“Bacurau”, vencedor do prémio do Júri no Festival de Cannes de 2019, é um filme que nos surpreende e nos empolga à medida em que a trama se desenrola. Pode ser invulgar se tivermos em conta as diferentes referências e géneros representados, bem como as diversas metáforas que nele existem. É, todavia, um filme a não perder. Seja pela acção, seja pelo facto de a cultura ser a maior força de um país. E ela, a cultura, deve subsistir sempre.
André Francisco, cinema7arte