Amor Sem Barreiras / West Side Story

o ecrã e a fúria

ficha técnica, sinopse, trailer: aqui

A partir de meados dos anos 50, o musical americano começou a ser dominado quase exclusivamente pelas adaptações dos grandes sucessos da Broadway. Adaptações sempre as houvera, mas não só Hollywood nunca se rendera a uma tão absoluta hegemonia, como nunca antes se mostrara tão reverente face aos originais, encarados agora pelos estúdios como se fossem textos de Shakespeare, como diz Jerome Delamater em obra que quem quer ser gente tem de citar ao escrever sobre “musicais”.
Esta nova fase coincide com o desejo de abordar temas mais “sérios”, assumindo especial relevância o tratamento das grandes questões sociais. O aparecimento dessa tendência veio reforçar a imperiosa necessidade de filmar “fora de portas”, captando, como no “New York New York” que abria On The Town, de um modo realista a acção e os ambientes. Depois da batalha para superar as barreiras do palco, de resto rapidamente vencida – sobretudo nas geniais coreografias de Busby Berkeley – recordo que a saída dos estúdios constituiu para o musical outra das grandes metas. A ideia era antiga e ganhou consistência com o progressivo desejo de saída dos ambientes artificiais dos estúdios (típica ideia do início dos “sixties”): não admira que o primeiro musical de rua acabasse por surgir.
Todavia, na opinião dos especialistas, essa nova tendência conduziu a um conflito inevitável e raramente resolvido com felicidade no musical americano. Pelo menos na sua fonte primeira, o palco, o musical pressupõe uma estilização difícil de adequar aos ambientes realistas com que se queria dar verosimilhança aos temas e às histórias.
West Side Story permite-nos a verificação prática dos problemas enunciados. Trata-se, em primeiro lugar, da “transcrição” de um “hit” da Broadway para o cinema. Segundo John Green, o director musical do Kime, “West Side Story” fora um monumental sucesso no teatro e toda a gente afirmava que Leonard Bernstein tinha escrito um dos melhores “scores” de sempre para um musical e que as letras de Sondheim constituíam um cometimento de vulto na sua área. A adaptação revestiu-se, pois, de uma carga quase religiosa de veneração pelo original, apenas com ligeiras alterações da ordem dos números (“Gee, Officer Krupke” aparece mais cedo na narrativa para não perturbar o tom negro do final e “Play it Cool” surge depois e não antes da luta) e com a criação de uma nova letra para a canção “America”, sublinhando-se sobretudo os problemas de adaptação dos porto-riquenhos nos Estados Unidos.
West Side Story, representa exemplarmente os pressupostos “realistas” acima enunciados. Tomando à letra a expressão “ruas de Nova Iorque”, suposto lugar da acção da peça, Robert Wise decidiu filmar na rua, provocando assim o único “confronto” sério entre as ambições do original e as ambições da adaptação cinematográfica. Dou a palavra a Robert Wise: “Jerome Robbins ficou intrigado com a ideia de filmar os números de dança nas ruas de Nova Iorque, mas percebeu que se tratava de um grande desafio, porque se iriam contrastar as suas mais estilizadas coreografias com os ambientes mais realistas de todo o filme. Não se pode dizer que fossem completamente reais, porque não se viam as multidões habituais. Tínhamos apenas algumas pessoas e um carro ocasional que passava e escolhíamos lugares que possuíssem uma forma que pudesse trazer à memória a noção de um palco”.
A passagem dos anos – já lá vão mais de quarenta anos – foi bastante cruel para com West Side Story, em meu entender. Mas naqueles tempos, no começo da tão “libertária” década de 60, a aparente renovação formal representada pelas filmagens em exteriores e a transposição de “Romeu e Julieta” de Shakespeare para Man¬hattan, actualizando a rivalidade dos Montecchios e dos Capuletos em dois bandos juvenis opostos por preconceitos rácicos, fizeram de West Side Story um sucesso sem barreiras que ganhou na Europa foros de excepcionalidade, não sendo despiciendo o eco que a “problemática social” terá encontrado junto das plateias cultivadas do “Velho Mundo”.
Mas, também houve, desde a primeira hora, quem tivesse continuado de cabeça fria e, fazendo finca-pé na tradição de espectáculo, fantasia e artifício do musical americano, logo apontasse as contradições do projecto. John Russel Taylor, em crítica de época, começava por afirmar que a brilhante ortodoxia do musical, com a plena integração das canções e da dança na história, era um contra-senso quando aplicada, como era o caso, a West Side Story. A cadeia canção-diálogo-dança que servia às mil maravilhas um tema ligeiro e mais ou menos “irreal” como era o On The Town, revelava-se imprópria para narrar com realismo a reactualização do trágico (como os ingredientes sociais a que já se aludiu) visada por West Side Story. As canções e a dança, contínuo a seguir Taylor, são momentos de expansão lírica ou de descompressão, logo processos impertinentes, porque não económicos, quando se trata de prestar rapidamente uma informação elementar: no caso de West Side Story, um número como “Play it Cool”, por exemplo, destrói o efeito da completa teia trágica causada petas mortes de Riff e Bernardo, anulando o sentimento que delas emana e que deveria preparar o clímax final. Com o seu artificialismo – repare-se na lógica do “palco” que o determina – esse número desequilibra o tom realista da tragédia. A opção teria de ser consequente: ou o artificialismo total (e então West Side Story teria de ser filmado como uma ópera) ou o realismo total.
Já vai longo o requisitório com prejuízo das referências positivas que West Side Story também merece. A começar pelo genérico – é de Saul Bass que en¬tre outras coisas geniais concebeu a espiral do genérico do Vertigo de Hitchcock – admirável de invenção e economia na definição do conceito do filme: estilização da ilha de Manhattan e variações súbitas da cor de fundo. De resto, o “raccord” do genérico com a acção é notável; o plano de helicóptero de Manhattan. Depois é a aproximação aos edifícios e às ruas (uma aproximação “coreografada”) até ao segundo belo “raccord” (num filme que os cuida bastante) com os estalos dos dedos dos Jets. O número musical que se segue é talvez o que melhor explora a utilização dos exteriores, no sentido em que não procura reconduzir o espaço da rua para as dimensões de um palco, ao contrário do que sucede nos outros grandes números, caso de “Dance at the Gym”, em “Rumble” ou em “Play it Cool”.
 
Todas essas sequências são números de conjuntos (aqui não há Astaires, Kellys ou Charisses), o que – como sabemos desde Stanley Donen Seven Brides for Seven Brothers – não é necessariamente um defeito, e todas elas são fortemente estilizadas, marcadas por uma decoração que insiste nos ícones realistas (paredes sujas, lixo, roupa a secar nos arames) mesmo quando, como já se afirmou, a dimensão do palco é claramente evocada.
Há quem, em nome de Natalie Wood, tudo seja capaz de perdoar a Robert Wise e a Jerome Robbins. Pessoalmente sinto-a perdida e insincera nesta sua Julieta de emigração: troco todo o seu trabalho em West Side Story, por um só plano de Fúria de Viver, (quando tem James Dean nos braços na noite fatal do filme) ou de Esplendor na Relva (quando balbucia, já meio histérica, os versos de Wordsworth). No cômputo geral, Rita Moreno é-lhe bastante superior, capaz de traduzir fisicamente os conflitos que se geram, mesmo sem os favores do “soft focus” que produz o onirismo do encontro de Maria e Tony ou os favores do simbolismo das cores que vestem de branco Maria (Natalie Wood) no começo do filme e a dão trajada de vermelho no desenlace trágico.
M.S. Fonseca
Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema